JOGO 17 – Sinfonia às avessas x Veja se você responde essa pergunta

JOGO 17
(2º jogo do Grupo 8 )

Sinfonia às avessas,
de Waldomiro Manfroi (Letra & Vida / 2009)
x
Veja se você responde essa pergunta,
de Alexandre Rodrigues (Não Editora / 2009)

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JUÍZA
Daniela Langer
– Desenha marcas e websites. Lê tanto que quando todas as palavras já estão lhe saindo pelos ouvidos e pelos olhos, escreve. Também estuda o que lhe causa espanto na literatura e procura pequenas epifanias entre as letras, praticando criação literária na oficina de Charles Kiefer ou nas esquinas de Porto Alegre, Paraty, São Paulo e, às vezes, Comala. Quando não sabe o que fazer com as mãos, joga ps2. Prefere Peter Parker a Bruce Wayne. Às vezes, é vista perdendo a voz no Olímpico Monumental. Jura que nasceu azul, quase um X-Men. Em 2005, venceu o Concurso Osman Lins de Contos – Secretaria Municipal do Recife. Tem contos selecionados nos sites Gostei Muito e Armazém Literário, e contribui para o periódico Jornal da Capital. Participou de diversas antologias, entre elas Inventário das delicadezas e Outras mulheres. Mantém o blog www.ordinariedades.blogspot.com.

TIME 1 Veja se você responde essa pergunta
Técnico (autor): Alexandre Rodrigues

UNIFORME: Edição de 128 páginas, daquelas com folhas de leve tom amarelado, o que é uma bênção para os visualmente desfavorecidos, como a juíza. Existe um projeto gráfico, tanto em relação à capa, quanto ao miolo. Essa unidade valoriza o time.

ESQUEMA TÁTICO: Veja se você responde essa pergunta entra em campo com um ousado, porém eficiente, 4-3-3. São 14 contos curtos, que se movimentam com passes de pequena e média distância, sem reter a bola por mais de dois toques, e alternam os chutes de fora da área com as jogadas na linha-de-fundo. Ou seja: Alexandre aposta na economia da linguagem (não na falta dela), humor e ritmo para narrar histórias que se unem em torno do tema do absurdo ou fantástico.

TIME 2Sinfonia às avessas
Técnico (autor): Waldomiro Manfroi

UNIFORME: Edição de 107 páginas, com a opção pelo papel branco que reflete a luz até doer a retina dos visualmente desfavorecidos, como a juíza. Não entendi o porquê da foto da capa, Rita Hayworth de braços erguidos na penumbra de uma luz lilás.

ESQUEMA DE JOGO: Sinfonia às avessas opta pelo clássico 4-4-2. São 22 contos que se desenvolvem em um plano bem burocrático, onde as peças confiam demais no talento individual e buscam sempre um drible a mais. O problema é que quando o repertório de jogadas termina, a defesa adversária pode prever o lance, e o jogo pouco objetivo acaba por chamar o adversário para o próprio campo, correndo risco de tomar logo o gol. Resumindo, Manfroi pesa a mão na linguagem e abusa dos estereótipos na tentativa de levar o leitor “a descobrir os sentimentos mais profundos de cada personagem-pessoa, o seu interior mais reservado, o dito não-dito na riqueza das entrelinhas”.

O JOGO
Autoriza o árbitro
.

Sinfonia às avessas toca no meio de campo, fazendo a bola girar entre histórias sobre o cotidiano. O autor usa de artifícios como a memória, desejos e sonhos para revelar a intimidade das personagens. Outra estratégia é a inserção de situações fora do comum, fazendo as vezes do lançamento que inverte o jogo e conduz ao ataque.

Embora faça parte da cartilha tocar a bola, tentar alguns dribles e lançar na área, isso não garante bom jogo. Bem amigos, acredito que a beleza do futebol não está em colocar em prática aquilo que dizem funcionar. Está no como fazer funcionar. Isso não lembra a literatura: todo mundo sabe que conflitos existenciais, absurdos que cortam o cotidiano e desvelos da intimidade têm lá o seu apelo – e podem dar certo em um conto –, mas só isso não é suficiente para garantir o resultado por 90 minutos, ou no caso, em um livro. Senão, seria muito fácil.

A boa intenção de Manfroi encontra os primeiros percalços na construção. A linguagem empolada faz parte de todo o livro, assim como o abuso dos adjetivos e das descrições. Manfroi prefere descrever a narrar. Prefere nomear sentimentos, sensações e verbalizar as consequências do que deixar com que suas personagens ajam. Pode ser que, como aquele técnico que não tem muita convicção em relação ao meio-campo, Manfroi não confie muito em seus personagens. Dessa forma, sente-se mais à vontade em dar vazão à sua visão de mundo – correndo o mesmo risco do técnico, ex-volante, que coloca um meia-armador de velocidade e insiste em que o cara volte para marcar.

O que quero dizer é que, durante a leitura, tive a impressão de ouvir a voz do autor em demérito ao narrador – e, claro, daquilo que é narrado. A ideologia do autor não descola do texto. Todo texto é ideológico, ou melhor, toda literatura tem ideologia. Estou me referindo à questão técnica: independentemente das ideias particulares do autor, o que é melhor para a história?

As personagens, em parte, são estereotipadas. Mulheres sensuais ou bonitas têm “corpo esguio, pescoço longo, pele morena, olhos verdes, cabelos às costas”; homens de meia-idade, cansados das relações fúteis do dia-a-dia, se interessam pelas mulheres mais jovens e sensuais. A dupla caricata aparece em mais de um conto, como em Praia no inverno e Lua de Mel no Caribe.

No quinto conto do livro, Sinfonia às avessas, o time adianta a marcação, rouba a bola e começa uma boa jogada na intermediária. Narrado em primeira pessoa, conta a história de um homem que, com o passar dos anos, se torna intolerante aos ruídos à sua volta. O incômodo vira uma espécie de fobia social e desejo de reclusão por parte do homem, que só abre uma exceção: os concertos da Orquestra Sinfônica. Uma manhã, esperando para comprar o ingresso de um concerto, o homem observa um grupo na sala de espera. De repente, percebe que “os ruídos dos carros começaram a ficar abafados, distantes, dominados por uma cortina de silêncio que brotava dos gestos das pessoas da sala de espera”. O narrador segue: “hipnotizado pelo prazer do vácuo, caminhei ao encontro daquela gente. Quanto mais próximo chegava, mais o silêncio crescia. Fui me aproximando, aproximando… e, quando me encontrei no meio da multidão, percebi que eram os sorrisos e as mãos daquelas pessoas que semeavam o silêncio”. Maravilhado, o homem se vê capaz de viver em sociedade, pelo menos naquela sociedade silenciosa que descobrimos ser um grupo de surdos-mudos. O lance começa bem, com a temática do desgaste e a impossibilidade de se adaptar em um mundo pós-moderno, onde a profusão de ruídos faz parte do cotidiano. A personagem vê sumir, na medida em que o barulho ao seu redor aumenta, os pequenos gestos e o verdadeiro sentido das palavras. Embora fosse um bom lance, o autor recorre às jogadas ensaiadas. Ao descrever mais do que narrar, embola nos clichês de linguagem e transforma o desenrolar do conto em um sumário.

Mas, opa. Olho no lance! No último parágrafo, o narrador-personagem toma fôlego e dribla para dentro da área – e apresenta uma bela metáfora: como o regente de sua amada orquestra, o grupo usa somente das mãos e das expressões do rosto para reger o mundo ao seu redor. Aqui, poderia caber um final mais aberto, para que o leitor pudesse, no eco do texto, resvalar para o mundo submerso de Manfroi. Porém, o autor não abre mão do excesso e da explicação. Nos segundos finais do primeiro tempo, o atacante perde a objetividade e dá mais um drible. Só resta ver a bola beijar a trave e sair de fininho para escanteio.

Os times retornam para o gramado e começa o segundo tempo.

Acredito que unidade seja a qualidade que diferencia um livro de contos de um volume com histórias reunidas apenas para chegar ao número de páginas suficiente para publicação. Alexandre Rodrigues e seu editor parecem compartilhar dessa máxima. Capa e orelha preparam o que o leitor vai encontrar: histórias que tratam do absurdo. O autor adianta a marcação do time, e organização e postura garantem a tomada rápida de bola e um chute de fora da área, no ângulo. Está aberto o placar.

Com uma linha de três atacantes ágeis e habilidosos, consegue chutar diversas vezes ao gol: viés do fantástico, vigor narrativo e a lapidação da linguagem. Em relação ao fantástico, chamo a atenção para a solução usada nas histórias onde o absurdo faz parte da trama. O narrador atua como os saudosos ponteiros: tanto podem voltar e armar a jogada, quanto ir ao fundo e ainda ter fôlego para o drible. Na elaborada estrutura do cotidiano, acontece naturalmente o cruzamento entre real e fantástico. Os elementos porosos possibilitam que essa sensação seja sentida tanto pelas personagens quanto para o leitor. Nada, por mais estapafúrdio que possa parecer, é apresentado como grande coisa. Pelo contrário, quanto mais absurdo, mais ordinário.

O vigor narrativo é o apoio, aquele jogador que tabela e dá suporte para o atacante-ponteiro. Sem ele, o ponta seria um órfão esperneando pela bola. Sem vigor narrativo, o viés do fantástico não passaria de um recurso fácil, uma jogadinha ensaiada para solucionar a trama e conquistar a arquibancada. Pois bem, o vigor é mais visível quando pensamos nas diversas abordagens feitas por Alexandre, e como ele consegue adequar personagem e situação ao que será contado. Resumindo, ao contrário do time adversário, Veja se você responde essa pergunta consegue mudar a voz, manter precisão no foco, tudo a favor da narrativa. Esse também é um livro sobre situações cotidianas. A diferença é que esse é um livro sobre diversas situações cotidianas, as diversas pessoas que as compõem e suas diversas formas de ver o mundo. Consequentemente, muitas vozes.

Sempre vale a pena ter um centroavante de área. Postado nas cercanias do gol inimigo, quando recebe a bola, não enfeita. Domina, respira fundo e escolhe onde vai colocar. Tipo a linguagem de Alexandre Rodrigues que, em uma primeira impressão pode ser crua; porém, tem a medida certa da economia.

E é com muito toque de bola que o conto O esquerdo ou o direito? ataca. Todo ele é narrado em forma de discurso direto, sem perder o fôlego ou o fio da meada. Acompanhamos a história de Alexandre (aqui, ironicamente, personagem), que, um dia, atende o telefone e precisa escolher se dará para doação o olho esquerdo ou o direito.

Senhor Alexandre?
Sim?
(…)
O senhor não recebeu a comunicação?
Que comunicação?
(…)
É para o senhor aparecer amanhã de manhã. Por favor, anote o endereço.
Não estou entendendo. Comparecer a quê?
À doação.
Mas eu já disse. Não preciso de nenhum transplante.
Está havendo um mal-entendido. O senhor não vai receber nada. É para doar um olho
.

A tabelinha entre o tom jocoso, nunca vulgar, e o ritmo da narrativa, envolve o leitor. O recurso auxilia no pacto com a narrativa, e só assim podemos sofrer a angústia e o desespero sugeridos pela situação. Lembrando a trajetória sem fim de Gregor Samsa, a personagem começa a percorrer o inferno burocrático atrás de um recurso para salvar seu olho. Quem decidiu que ele deveria doar? Quem o libera dessa situação? São respostas que só levam a mais perguntas, sempre sem chegar a nenhum outro lugar além de um guichê de orgão público. É um bonito gol de letra.

Mas nem só de situações fantásticas é feito o jogo de Veja se você responde essa pergunta. Talvez porque o absurdo faça parte do ato banal de viver, o livro agrupe histórias com viés mais realistas, mas que também não abrem mão de manter uma tática bem delineada, com estilo conciso e objetivo.

Últimos minutos de jogo

Veja se você responde essa pergunta parece mais organizado que Sinfonia às avessas.  A vantagem em relação ao adversário inicia no projeto gráfico mais atraente e adequado. Além de uma temática definida, encontramos um esforço conjunto para que o livro seja um projeto.

Enquanto os jogadores trocam passes, esperando o apito final, os últimos comentários.

Ambos eram estreantes na categoria: Alexandre Rodrigues estreia na ficção, Waldomiro Manfroi dá o primeiro passo na narrativa curta. O que se conclui que tradição não conta muito no jogo literário. Apesar de, aparentemente, Waldomiro ter a seu favor cinco romances publicados, Alexandre demonstra maior intimidade com a técnica da escritura. Seu texto é mais lapidado, a construção das narrativas é mais sólida, com maior preocupação em escapar dos lugares-comuns e dos clichês.

Aos 45, cravados, o árbitro ergue o braço.

PLACAR
Sinfonia às avessas 0 x 2 Veja se você responde essa pergunta

VENCEDOR
Veja se você responde essa pergunta, de Alexandre Rodrigues

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8 respostas para JOGO 17 – Sinfonia às avessas x Veja se você responde essa pergunta

  1. dante disse:

    é rede!

    parabéns, alexrod!

  2. Laura Assis disse:

    Tentei aqui e não consigo lembrar de nenhum conto ruim do “Veja se você responde…”. O livro é muito bom, supreendente e não perde o folêgo… pelo contrário, vai crescendo. “Aquarela do Brasil” é bom, mas em seguida vem “Fetiche idílico”, que é ainda melhor, e assim sucessivamente até “Nariz”.
    E a resenha da Daniela toca num ponto importante (que é uma estratégia narrativa do Alexandre que faz mesmo a diferença): “Nada, por mais estapafúrdio que possa parecer, é apresentado como grande coisa”. É aí que está a graça da coisa. A aparente normalidade do absurdo.

    Não li o outro livro e nem me animei a ler.

  3. Bela resenha. Fiquei ainda mais curioso sobre o livro do Alexandre Rodrigues, que me espera pacientemente na pilha aqui do meu lado. Será o próximo.

  4. Síssi disse:

    Alexandre sabe o que faz.

  5. Xerxenesky disse:

    Acho muito bom o livro do Rodrigues, mas sou tremendamente suspeito para falar. Que bom que ganhou.

  6. Rafael Bán Jacobsen disse:

    Tá, tudo bem, mas quem “percorre um inferno burocrático em uma trajetória sem fim” não é o Josef K.? Gregor Samsa não é o que vira inseto?

  7. dani langer disse:

    bah, bola fora total da juíza. que vergonha.
    sim, o gregor é o que vira inseto. perdido, é claro. mas sem burocracias. hehehe
    valeu, rafael.

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