JOGO 19 – Mar quente x No limite dos sentidos

JOGO 19
(3º jogo do Grupo 1)

Mar quente,
de Enio Roberto (Dublinense / 2009)
x
No limite dos sentidos,
de Jacira Fagundes (Movimento / 2009)

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JUÍZA
Emily Canto Nunes
– É jornalista interessada em cultura com uma predileção pelas artes visuais, pelo design e pela literatura. Colorada e ex-assessora de imprensa, já teve diversos blogues e escreveu ficção. Foi aluna dedicada do mestre Luiz Antonio de Assis Brasil em sua oficina de criação literária, da qual saíram os três contos publicados no livro Contos de oficina 35 nos idos de 2005. Atualmente, dedica-se ao jornalismo online durante as madrugadas e, de dia, sonha em tornar seus projetos pessoais realidade. Alguns de seus escritos desatualizados estão em http://cantonunes.blogsome.com.

O JOGO

Ter que atribuir um placar ao embate entre dois bons livros é quase tão injusto quanto ter que responder a um amigo querido se gostamos ou não do presente logo após abri-lo na sua frente. Um presente de aniversário por vezes é mais valioso, no sentido metafórico, do que o objeto em si. Os dois livros que resenhei também estão acima de qualquer resultado. Isso porque o valor de cada livro, de cada autor e de sua escrita está em si e não na comparação – ou, ainda, competição – com o outro. Ainda assim, a ideia de um Campeonato Gaúcho de Literatura me agrada e foi bem-vinda na medida em que incita e excita a reflexão sobre os livros, para além da apreciação individual que cada leitor faz. Falatórios à parte, devo dizer que sobre mim recaiu a difícil tarefa de atribuir um placar à disputa entre Mar quente, de Enio Roberto (Dublinense, 2009, 96 pg.) e No limite dos sentidos, de Jacira Fagundes (Movimento, 2009, 88 pg.). Antes que o juiz apite o início da partida, devo dizer que ambos os autores, muito hábeis com as palavras que são, cativaram-me do início ao fim de cada um dos seus contos. E prender a atenção do leitor da maneira como fazem Enio e Jacira em seus títulos só time da primeira divisão consegue.

Partindo dos critérios menos literários do jogo, por assim dizer, No limite dos sentidos, de Jacira Fagundes, sai na frente e ganha pontos pelo título e pela capa mais instigantes que os de seu rival, que traz um título comum e uma capa pouco atrativa. Entretanto, ao abrir ambos os livros, Mar quente, de Enio Roberto, dispara em contra-ataque veloz, pois oferece ao leitor o resultado de um trabalho editorial digno das grandes editoras ou daquelas que se preocupam com a qualidade da leitura. Do projeto gráfico à escolha do formidável papel pólen, passando pela fonte, e com um destaque especial para o espaçamento, Mar quente é agradável aos olhos, aguça o prazer que só um bom livro pode proporcionar em uma dessas tardes gélidas do inverno gaúcho. A edição do livro de Enio Roberto é um escanteio bem cobrado, uma jogada ensaiada que dá certo e que termina com um belo gol. Da edição de No limite dos sentidos, de Jacira Fagundes, não podemos dizer o mesmo: pequenos erros na orelha e uma diagramação que espreme as frases comprometem o início da partida e até o ânimo do torcedor. É como se o time entrasse em campo retrancado jogando em casa.

No que diz respeito ao esquema tático de jogo, dificilmente um livro de contos consegue fugir do básico, do 4-4-2, o qual consiste, resumidamente, em reunir textos com temáticas afins, o que pode ser muita coisa. É assim com No limite dos sentidos e também com Mar quente, mas isso não é necessariamente uma bola fora de ambos. Ainda não encontrei um livro de contos de um único autor que propusesse uma unidade temática revolucionária ou muito criativa e se saísse bem no que diz respeito à literatura. Todavia, No limite dos sentidos tropeça ao exagerar na quantidade de contos. A supressão de alguns dos 23 contos que não engrossam o volume – pois, apesar da quantidade, o livro tem apenas 88 páginas – faria bem à unidade temática, que como a quarta capa (ou contracapa) assinada por Marcelo Spalding (também responsável pela orelha) anuncia, traz “histórias de amor, morte, desejo, silêncios que revelam muito de cada família, de cada um de nós” e, acrescento, de envolvimento com a terra.

Respeitando o 4-4-2, o livro de Enio Roberto, tal qual prenuncia João Kowacs Castro na orelha, traz 14 contos em que “diferentes vozes são levadas por diferentes paixões, enquanto cruzam o tempo e a memória e o que não é dito” e que, por vezes, são embalados pelo balanço do mar. Fim do primeiro tempo, 1 a 0 para Mar quente.

No segundo tempo, o jogo recomeça com a certeza de que um livro não se julga pela capa e que é preciso adentrar nas histórias de Enio Roberto e Jacira Fagundes, de personagens e universos tão próprios e passíveis de serem apropriados pelo leitor. Com um estilo bastante trabalhado, cheio minúcias, com palavras bordadas à mão, Jacira Fagundes pinta cenários que, por vezes, remetem ao interior, não necessariamente do Rio Grande do Sul, a mulheres e homens que parecem familiares e que bem poderiam ser o vizinho da casa ao lado, o tio distante, o pai daquele amigo de infância, ou nós mesmos. Menos rebuscado, Enio Roberto também descreve personagens sólidos, especialmente os masculinos – que predominam – e encanta ao apresentar uma prosa tão essencial, objetiva e limpa. De certo modo, elegante. Jacira, tão cuidadosa, desliza em expressões como “Queria-a despudorada, nua, sua, sol e lua” ou “me dispus a me conectar com o mundo através da telinha do computador” e quase marca um gol contra.

Em uma partida tão disputada, a bola fora de ambos os livros saiu de jogadas semelhantes: os contos que tratam de amores e desamores, de relacionamentos, deixam a desejar: Ternura e Maldita epígrafe em Mar quente, e Aquele do bico fino em No limite dos sentidos. Ao meu ver, uma das tarefas mais árduas de quem escreve uma ficção que se propõe verossímil é abordar um determinado sentimento e fazer o leitor de fato pensar ou lembrar de como é aquele sentimento, por mais distinto que ele possa ser daquele sugerido pelo autor. É, de certa forma, fazê-lo sentir. Um livro só deixa sua marca se, de alguma forma, alcançar o leitor em seu íntimo. Pouco são os autores que conseguem, por exemplo, escrever contos eróticos, ou textos que contenham sexo como fazia Hilda Hilst, sem descambar para a pornografia ou, pior, para os livretos de banca de revista.

Enio Roberto é muito mais bem-sucedido em textos como Em algum lugar do meu passado, que conta através de uma metáfora o fim de um relacionamento de anos na perspectiva do homem praticamente abandonado, e Crocodilo e lagartixa, o início e o fim de uma amizade de infância, daquelas que todo mundo teve e acreditou que nunca acabaria. Jacira Fagundes, que tem altos e baixos na partida, destaca-se pelos contos em que desperta no leitor a emoção, seja ela qual for: medo, raiva, desejo, angústia ou compaixão. Bons exemplos são Terra viva e Casa inacabada, que falam da relação do ser humano com a terra, as raízes e a morte; Um ponto letárgico se anuncia no espaço, que mais parece um sonho transformado em texto e que prende pelo ritmo alucinante; Noite fria de vigília, Quem fica para o velório, Tempo de ausências e desencontros e as diferentes facetas da morte, da perda, da traição e do amor, e também o conto Carrinho de rolimã, que traz a vivacidade de uma menina ainda pueril. E é com textos como esse, que despertam o leitor para diferentes emoções e até sensações, que Jacira Fagundes e seu No limite dos sentidos marcam um formidável gol de placa já no final do jogo.

Contra um Mar quente que por vezes se torna frio, equilibrado e objetivo demais, No limite dos sentidos poderia ter marcado mais um gol e vencido a partida, não fossem as tentativas fracassadas de adentrar o difícil, porém tentador, reino da literatura fantástica, de mestres como Jorge Luis Borges. Alguns contos de Jacira atingem o incompressível. O resultado do embate é típico do futebol, quando um time de muita técnica, tática e bons jogadores não consegue vencer porque falta raça, e o adversário – à altura –, de tão ansioso que está, tropeça nas próprias pernas. Ao término da partida, pode-se dizer que No limite dos sentidos não virou o jogo por problemas seus e que pelo trabalho que vinha sendo desde o projeto gráfico, Mar quente mereceu o empate que segurou até o final.

PLACAR
Mar quente 1 x 1 No limite dos sentidos – e um jogo bonito de futebol-arte

EMPATE
Mar quente, de Enio Roberto e No limite dos sentidos, de Jacira Fagundes

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11 respostas para JOGO 19 – Mar quente x No limite dos sentidos

  1. Interessante este jogo, por dois aspectos. O primeiro deles é a juíza admitir abertamente ter se afeiçoado aos dois times, e concluir o raciocínio dizendo que não achava justo comparar dois livros. Isso equivale a uma declaração de impedimento. Mas, vá lá, aqui as coisas não são tratadas com tanto rigor assim. O segundo é que o placar, a meu ver, não espelha o resultado do jogo. Mar quente recebeu um único gol, por seu projeto gráfico com ressalvas à capa, mas “Enio Roberto é muito mais bem-sucedido em textos como Em algum lugar do meu passado, que conta através de uma metáfora o fim de um relacionamento de anos na perspectiva do homem praticamente abandonado, e Crocodilo e lagartixa, o início e o fim de uma amizade de infância, daquelas que todo mundo teve e acreditou que nunca acabaria.” Fiquei boiando. Ou melhor, compreendi muito bem: a juíza caiu de amores por ambos os livros, e sua resenha nada mais é do que a busca de argumentos para justificar um placar já ditado por seu coração.

  2. Marcel Citro disse:

    Bela resenha, ainda não tive a oportunidade de ler as obras mas a ponderação feita pela Emily foi muito feliz.

  3. É, o gol único dado ao projeto gráfico de Mar Quente surpreende e destoa um tanto da argumentação. No conjunto, porém, o texto apresenta uma certa naturalidade de leitora dando a sua opinião, o que o torna interessante.

  4. Paula M.E. disse:

    Puxa, se não fosse aquele gol salvador feito pelo projeto editorial, Mar quente estaria amargando outra.

  5. Gordo Du disse:

    Eu diria que a capa do livro de Jacira e seu título “No limite dos sentidos” além de instigantes fazem bem aos olhos. Até posso concordar que Mar quente seja um título comum, mas dizer que a capa dele seja pouco atrativa, não há como. Sei que vai muito aí da subjetividade. O púrpura da capa me dá a impressão de natureza aveludada, demonstra um mar quente de verdade. Parabéns ao Samir Machado de Machado.

    • “O púrpura da capa me dá a impressão de natureza aveludada, demonstra um mar quente de verdade.”
      Que maravilha! Parabéns, Samir, por teres conseguido provocar esse efeito num leitor. Aliás, o leitor que todo escritor quer ter.

  6. Paula M.E. disse:

    Não concordo que o título seja comum. Não sejamos simplistas em se tratando de literatura. Mar quente é um nome em código, uma mensagem subliminar. No dia (daqui a 10, 20, 50 anos) em que abrirmos nossas portas de casa em Porto Alegre, ou aí na tua Lajeado, Gordo, o título estará megavalorizado, mas, já, absolutamente, desnecessário.

  7. Paula M.E. disse:

    …por quê? Ah, porque o mar vai estar ondulando ali, derretido.

  8. Amanda disse:

    A resenha da Emily se parece muito com a que fiz. Mostra uma juíza sensível, interessada e que mergulha fundo naquilo que lê. Gostei de saber que ela também apreciou os livros que recebeu para arbitrar 🙂

    Porém, gostaria de ter visto mais gols. Independente de vitória ou empate, imagino que os livros mereciam mais de um gol cada, levando em consideração o apreço que a juíza teve pelos dois.

  9. Enio Roberto disse:

    Jacira Fagundes, agora que li atentamente o “decisum” de Emily Canto Nunes, não posso mais concordar com o que me disseste naquele fraterno email. Empatamos coisa nenhuma! No vamos ver, contos contra contos, técnicas em comparação, “No limite dos sentidos” é o evidente vencedor, e com gol de placa. Assim como diretor de futebol não participa do jogo, projeto editorial não se mescla à literatura. Não devia valer. Uma pena que vais ficar de fora. Em todo caso, parabéns!

    • Paula M.E. disse:

      Eu muito me engano, ou o treinador Dunga entrou em campo de novo? Parece que nas sombras de seu comentário Enio insere uma reclamadinha.

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