JOGO 24
(3º jogo do Grupo 6)
Fora do lugar,
de Rodrigo Rosp (Não Editora / 2009)
x
Tempos frágeis,
de Marilice Costi (Movimento / 2009)
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JUIZ
Sidnei Schneider – Poeta, contista, tradutor e ensaísta. Publicou Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de navegação (Dahmer, 1999) e a tradução Versos singelos/José Martí (SBS, 1997). Finaliza o livro de contos Andorinhas e outros enganos (título provável). 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu (UFRGS, 2003) e 1º lugar em poesia no Concurso Talentos (UFSM, 1995).
O JOGO
SÚMULA DO JOGO
Fora do lugar, de Rodrigo Rosp (Não Editora, 2009), compõe-se de 13 contos inteiramente sintetizados pelo título: a realidade está fora de lugar através da narrativa fantástica e a linguagem se ausenta do trivial pelo deslocamento de palavras e expressões. Essa atitude gera no leitor um distanciamento ante o narrado, amarra sua atenção e ressalta termos, o que, sopesadas as sucessivas edições do gênero no século findo, ainda torna a leitura instigante.
O estranhamento propiciado pelo fantástico, evidentemente, não implica forçosa evasão do cotidiano ou da história, constituindo-se apenas num dos modos de organizar o universo ficcional para melhor desvelá-los. A maior ou menor conexão ao aqui e agora – o que já foi chamado de realismo quando bem-sucedida, conceito viável se não nos aferrarmos ao realismo do século XIX – tanto acrescenta ou diminui vigor estético à obra quanto as soluções narrativas e de linguagem que a realizam.
Uma característica dos contos de Rosp, sempre curtos e ágeis, é a presença predominante de personagens diretos, menos complexos, de bate-pronto. O fato é que o autor consegue fazer algo com eles, trazendo sua obra a um antigo caudal integrado por autores como Boccaccio (1313-1375) e Gil Vicente (1465?-1536?).
O primeiro conto, que dá título ao livro, tem uma estrutura de enredo tradicional: um sujeito pirando na sua casa em função do que se saberá depois. A organização criativa da linguagem é que surpreende: ele tropeça em chinchilas, abre uma caixa de bombons com pregos, vê três livros de autoajuda prestes a cometer suicídio, etc. A frase que justifica o desespero no final, de tão saborosa, não quero entregar. Traz um tanto de crônica adolescente, mas isso não é um mal. Contudo, mantém algum laivo de filme visto. Simetricamente, Funeral dos relógios, narrativa realista com um respingo fantástico, é moldado na mesma estrutura e revela semelhante angústia, com a diferença de o final ser o oposto, feliz na aparência, mas devorado pela ironia do tempo.
Entre os contos que mais agradaram a este palpiteiro, destacaria dois. Calada e redundante, história do amor perfeito, trata de um marido ante a derradeira guerra conjugal, que se apaixona pela esposa após ela entrar em coma num acidente. Significativa é a presença de um segundo enlace, agora com uma mulher apetitosa e cheia de vida, que, para ser por ele plenamente amada, precisa sofrer paralisia semelhante. Distingue-se a esgrima de uma ironia pontuda e certeira. Não importa que Engolidora de espadas, mais adiante, repita com sucesso a estrutura de segundo momento. Coração da noite narra quase com as mesmas palavras as relações de um homem com três mulheres, uma por vez – a puta loira, a puta morena e a esposa. É um dos momentos de humor do livro e, se lembra o texto de um Luis Fernando Verissimo, resolve-se bem. Com uma ressalva: puta não entra em carro antes de acertar o valor do serviço. Em ficção, qualquer coisa pode, desde que exista justificativa.
Já em Ideia ideal, o leitor teria que atravessar as páginas de um enredo clichê e cansativo, a do escritor que sonha e esquece a ideia que teve, para alcançar a única surpresa, a linha final. A fluência e a síntese são conquistas de Rosp, embora sobre alguma palavra se formos exigentes, sem que isso, no entanto, cause prejuízo ao conjunto. Por exemplo: “Pego uma maçã (…) para fazer companhia a [mais] três ameixas. [Frutas da estação rodoviária.]” (p.18) ou “Alguns minutos de admiração foi tudo que [dela] teve [o poeta] (p.72).
A capa de Samir Machado de Machado, uma poltrona no meio do asfalto, é adequada e chama atenção – não apenas pela fotografia. O tratamento com filme amarelo vertical e a disposição dos caracteres a valorizam. Remete a capas de disco da agência britânica Hipgnosis, surgida no final dos anos 60.
A súmula aponta dois gols para Fora de lugar, com domínio de campo e bons chutes na trave.
Tempos frágeis, de Marilice Costi (Movimento, 2009), traz 18 contos realistas, que abordam problemas agudos do nosso tempo. A autora não teme apertar o pus: a empregada alcoólatra estuprada aos 14 anos, a órfã do interior explorada pela tia, a mulher que perde o emprego sem justificativa, a velha gorda no andador de inox do apartamento de baixo, as dificuldades da mãe que trabalha fora, o professor humanista que abusa da filha deficiente, o suicídio de uma mulher grávida, etc. Há temas brandos, como o encontro tardio com um amor da juventude.
A linguagem é essencialmente chã e cotidiana, com poucas ocorrências de relevo. As minhas preferidas, diante do contexto, são “A casa toda desejando vida” (p.44) e “aqueles lindos olhos pestanudos” (p.26). A aposta se concentra na criação de situações, terríveis quase sempre, narradas com uma naturalidade que desconcerta exatamente por nos mostrar que não tem nada de natural. Busca uma resposta sensível e humana do leitor, mesmo quando expõe o insensível e desumano.
Não se julgue que a narrativa de aproximação realista tenha se esgotado. Ao contrário: bem articulada, com tramas criativas, mudanças de narrador e ponto de vista, surpresas, guinadas, entrelaçamentos de tempo ou espaço, etc., tem muito a dar. Mesmo na aposta, por assim dizer, menos complicada de Marilice.
Ela, ele e Marcos, com um título que já chama a atenção, inclusive porque engana o leitor, é um dos melhores contos do livro. Curto e grosso, diferencia-se pela organização interna. São quatro parágrafos: a situação da esposa, sem subterfúgios, “seu bebê a limita”, “ é a corda em seu pescoço”; a do marido, não-estereotipado, que “não a amava mais”; a palavra do feto, numa sensacional guinada de um parágrafo a outro; e, por fim, a da amiga que compreende a tragédia. Um tijolaço na cara, ousado nas viradas.
O caracol e o ar, sobre uma mulher incomodada com o barulho do ar-condicionado da vizinha, que surpreende esta em grande sofrimento e solidão. O andador de inox, os revoluteios que precisa fazer para atravessar o corredor, a gosma presente no assoalho fazem que a mulher desista de qualquer reclamação: “Vim ver se precisa de algo. O esforço despendido (com o andador) para coisa tão sem importância fez com que Gisela soltasse um suspiro com muita dificuldade”. Tudo na velha indicava que “Logo o barulho ia terminar”. Perceba-se aí a dureza da vida, a articulação do inevitável.
Em Mick Jagger visita o Rio Grande, o rolling stone empana a relação de um jovem casal com filho ao dar um beijo na moça tiete, o que leva o casal ao divórcio e, mais tarde, a que o filho, marcado pela separação, monte uma banda de “roque”.
Entre os méritos, ocorre uma questão de linguagem que perpassa o livro e que me custa um tanto apontar. Os benefícios da concisão nem sempre alcançam os períodos criados. Se, no livro de Rosp, temos algumas poucas ocorrências de palavras sobrantes (sempre mais fáceis de verificar pelo distanciamento de quem não as escreveu, é claro), aqui elas se apresentam em número excessivo. Por exemplo, a esmo: “Ela [, com vagar,] curtiu célula a célula, cada órgão” (p.31); “aguardou um retorno – mesmo [que fosse] negativo – que não aconteceu” (p.36), o corte excluiria também o duplo “que”; “Quando eu chegar lá te aviso – referia-se ao solo francês” (p.41), sabemos pelo que vem antes, e imediatamente depois, que se trata da França; a insistência de atribuir mais de um adjetivo, “o barulho urbano noturno da avenida” (p.45), num todo textual que não se propõe a maiores alterações. Para contrabalançar, a concisão no início de História em ruínas: “Era uma noite de tiritar. Vento sul, chuvinha fina. Termômetros baixos. Isabel já está com as crianças acomodadas e prepara-se para dormir. Batem à porta. O que seria àquela hora? O síndico não costumava vir tão tarde. Espia pelo olho mágico e observa um homem com roupas escuras.” (p.38).
Em De boas referências, não fica claro, sem grande pausa, a que personagem o texto está se referindo no princípio do conto, fato agudizado pelo uso de pronome usualmente ambíguo na expressão “suas mãos”. Por último, abordo o que se dá em textos de vários autores: nós, os seres humanos, temos uma atenção toda especial quando o assunto é sexo. Meia palavra e pá!, compreendemos tudo. Assim, em Abuso, título por si demasiado informativo, quando lemos que o professor reduz sua carga horária “para cuidar de Janine”, adivinhamos o que virá depois, e adivinharíamos mesmo se o título fosse outro, dado o início do conto. Não se trata, bem entendido, de exigir surpresa quando tudo está dito no começo, mas de algo mais que a meditação do advogado.
A capa, um vidro trincado em forma de borboleta, de autoria da própria Marilice, é adequada e chamativa. O fundo celeste e o vermelho-sangue próximo ao trincado reverberam a fragilidade presente no título.
A súmula registra um gol para Tempos frágeis, escanteios cabeceados e jogo perigoso.
PLACAR
Fora de lugar 2 x 1 Tempos frágeis
VENCEDOR
Fora do lugar, de Rodrigo Rosp
Maravilha de resenha! Minuciosa, consistente, um jogo parelho decidido nos detalhes. Parabéns aos dois times e à perfeita arbitragem. Só estou curioso para saber como se dará o desempate, pois os três times têm exatamente os mesmos pontos.
O desempate, assim como no futebol, obedece os critérios listados na seção “Tabela de Jogos”: saldo de gols, gols pró e confronto direto. No saldo, os três times seguem empatados. Já nos gols pró, ENTRE FACAS fica na frente, o que lhe garante a primeira posição. Assim, para decidir entre FORA DO LUGAR e TEMPOS FRÁGEIS só resta recorrer ao cirtério do confronto direto. Com isso, FORA DO LUGAR fica em segundo no grupo e TEMPOS FRÁGEIS em terceiro.
🙂
Gracias pelas informações! Elas estavam dando sopa ali na página da Tabela de Jogos, eu é que não tinha prestado atenção. Mas, como não entendo lhufas de futebol, continuo sem saber o que é “confronto direto”. Usei todos os meus quatro neurônios para tentar deduzir e não cheguei lá. Vou procurar no Santo Google. Por outro lado, me intriga o fato de um jogo tão bonito ter merecido apenas um comentário: o meu próprio. Será que os demais torcedores não gostaram? Como não acredito nesta hipótese, fiquei sem compreender.
Eureka!!! Graças aos meus santos de devoção, Santo Google e Santa Wikipedia, descobri o que é o tal “confronto direto”. É tão simples e óbvio, não sei o que me deu para não ter atinado sozinho.
Parabéns Sidnei pela excelente e minuciosa crítica ( ou resenha) de ambos os livros. Quanto ao Rosp, concordo com tudo que disseste em gênero, número e grau. Quanto a Marilice, estou devendo a ela minha leitura, pois tenho andado assoberbada e sem tempo para a boa literatura gaúcha. Oxalá as férias cheguem logo! De qualquer forma, deixo aqui, meus parabés aos dois autores, pela ousadia e bravura de aventurarem-se no campo da escrita, que exige a ourivesaria da palavra, a paciência de amadurecer textos, e a espera pela resposta dos leitores. A ambos, deixo minha admiração.
Lívia Petry