JOGO 4
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar,
de Lourenço Cazarré (Bertrand Brasil / 2009)
x
Enchentes,
de Guido Kopittke (Dublinense / 2010)
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JUIZ
Aguinaldo Medici Severino – Nasceu em 1961, em São Bernardo do Campo (SP). É doutor em física e leciona na Universidade Federal de Santa Maria. Organiza desde 1994 em Santa Maria um Bloomsday, homenagem a James Joyce e seu livro Ulysses. Publica impressões sobre os livros que lê no blog guinamedici.blogspot.com
O JOGO
Time: A misteriosa morte de Miguela de Alcazar
Há livros que nos provocam intelectualmente e outros que simplesmente se deixam desfrutar, sem muito esforço. É o caso deste divertido A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, de Lourenço Cazarré, jornalista gaúcho radicado em Brasília. Cazarré é um autor experiente e já premiado, com mais de 30 livros publicados, entre contos, romances e textos dedicados ao público infanto-juvenil.
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar é antes uma sátira que um romance policial canônico. O deboche é explícito. Uma versão anterior dele foi publicada na forma de folhetim em um jornal brasiliense em meados dos anos 1990. Por ter sido pensado originalmente como um folhetim, o livro ainda guarda algo do ritmo e truques deste gênero, seja no tom com que o narrador se comunica com o leitor, pontuando a história com divagações; seja na sucessão de “ganchos” que aparecem ao final de cada capítulo, postergando a elucidação da história.
O enredo é simples: um jornalista é escalado por seu editor para cobrir um inusitado encontro de velhos escritores de romances policiais. O encontro é sigiloso e acontece em um hotel de Brasília, administrado por um gerente bem conhecido do editor. Tanto o jornalista quanto o editor e o gerente são terrivelmente mal-educados, preconceituosos, repulsivos. Já os escritores inventados por Cazarré são caricaturas de escritores reais (entre eles Dashiell Hammett, Agatha Christie, Georges Simenon e Jorge Luis Borges). Ele faz com que cada um desses personagens de alguma forma tenha se familiarizado com o português, que falam com acentos regionais bastante marcantes. Um fala com acento mineiro, outro carioca, os demais em registros gauchesco, nordestino e paulistano. Há ainda um deles que se expressa por meio de um rascante portunhol. Esse artifício dá a Cazarré oportunidade de fazer seu narrador arriscar alguma sociologia selvagem, na qual as diferenças regionais brasileiras são contrastadas com a forma de resolução de crimes utilizadas por cada detetive, características de seus países de origem.
Como é de se esperar em um romance desse tipo, alguém morre (o título do livro já antecipa isso, claro). Cabe, então, aos detetives, com a ajuda do jornalista, do gerente do hotel e de um delegado (tão pernóstico quanto os dois) descobrirem quem matou Miguela de Alcazar. Trata-se do típico problema de crime em uma sala fechada, mais do que conhecido por quem aprecia literatura policial.
Time: Enchentes
Enchentes é o romance de estreia de Guido Kopittke, autor gaúcho com alguma experiência de produção e publicação de livros de contos e outros textos curtos. Seu romance pode ser entendido como uma alegoria, no sentido em que ele faz uma leitura do passado do Rio Grande do Sul utilizando elementos historiográficos. Todavia, também podemos entendê-lo como um conto moral, no sentido em que ele exemplifica para o leitor como as transformações sociais e políticas de um período revolucionário operam e afetam um indivíduo.
Confessadamente não se trata de um romance histórico, mas antes uma ficção psicológica, na qual se tenta entender e descrever a motivação para as ações impetuosas de um jovem comerciante gaúcho nos anos que antecedem as mudanças provocadas pela revolução de 1930.
Kopittke produz um enredo linear, apesar de fragmentar a voz de seu narrador e tentar alguma heterogeneidade enunciativa. Um comerciante influente de uma cidade próxima a Porto Alegre é convencido a viajar de férias, deixando seus negócios aos cuidados do filho. O núcleo central do romance é a história desse rapaz, que aproveita a oportunidade para imprimir sua marca nos negócios. De alguma forma, ele infere que, apesar da grande influência e poder de seu pai, os negócios devam ser modernizados e adaptados às novas realidades. Suas ações para alcançar esse objetivo são antes fortuitas e intuitivas que realmente planejadas. Há nele elementos modernos, transformadores, mas também um romantismo atávico, que o impede de compreender na totalidade o alcance de suas ações. Kopittke usa vários personagens para criar os cenários onde seu personagem principal confronta seus sonhos e seus planos com a realidade objetiva.
Kopittke se preocupa com a adequação das formas de expressão de seus personagens. O romance é dividido nas três partes clássicas de um drama (definição, complicação, resolução). Na primeira parte, as motivações do rapaz são apresentadas. Na segunda, um elenco de personagens de apoio surge para criar alguma tensão, propor alternativas, gerar reviravoltas. Na última, Kopittke apresenta seu desfecho.
Mas o leitor emerge do romance sabendo que esse final poderia ser outro, como ocorre na vida, onde, frente às mesmas condições, aos mesmos problemas, cada indivíduo, por conta de um ou outro detalhe insignificante, experimenta e acolhe soluções bastante distintas.
Os dois tempos do jogo: A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e Enchentes comparados.
Esses dois romances parecem ser o resultado de um mesmo projeto: entreter honestamente, mas sem grandes pretensões intelectuais, nem literárias. Um é mais bem-humorado, faz uso do deboche, da sátira, brinca com a impossibilidade de se inventar uma história policial que não tenha sido ainda experimentada. O outro usa o que seria material típico de um soturno e eventualmente aborrecido romance histórico para produzir uma reflexão ligeira sobre as motivações de indivíduos frente aos desafios da vida.
Quase idênticos em extensão (são curtos, não mais que 160 páginas), os dois livros foram bem editados. O livro produzido pela Bertrand Brasil (A misteriosa morte de Miguela de Alcazar) tem uma capa divertida, boa distribuição do espaço e inclui bons detalhes gráficos. O livro produzido pela Dublinense (Enchentes) tem uma capa bem inspirada. Seu designer explora, com um pouco mais de exuberância, as possibilidades gráficas disponíveis. Isso pode ser apreciado nos detalhes refletidos espalhados pelo livro (nos títulos dos capítulos e na numeração, por exemplo), elementos que jogam com o tema central da história de uma forma particularmente feliz.
Os dois livros remetem a produções cinematográficas. A misteriosa morte de Miguela de Alcazar lembra alguns aspectos de Murder by death (Assassinato por morte), filme de Robert Moore, de 1976. Já Enchentes parece se inspirar em Il gattopardo (O leopardo), filme de Luchino Visconti, de 1963.
Se os dois livros compartilham boas propostas, bom acabamento gráfico (e, eventualmente, similar inspiração no mundo do cinema), padecem em conjunto dos mesmos defeitos. Nenhum dos dois é muito feliz nas metáforas ou nas associações que criam. Nenhum dos personagens nos dois livros parece merecer ser reencontrado em outro livro.
Os dois livros abusam do uso de clichês, frases feitas e termos gauchescos. Parece que ambos se aferram ao efeito jocoso que esses termos provocam num leitor não familiarizado, justificando com isso a forma de agir de seus personagens, acrescentando alguma graça e relevo a eles. É um artifício limitante nos dois casos, mesmo em Enchentes, no qual toda trama se passa no Rio Grande do Sul do início do século passado.
Os dois livros são lineares, previsíveis. Um leitor ingênuo pode se satisfazer com uma história bem contada, mas um leitor reflexivo pode chegar a se irritar com a ausência de algum desafio que seja digno de nota. Ninguém se aproxima de um texto para se incomodar ou perder tempo, os dois livros se deixam ler com prazer, mas é de se esperar que um romance provoque mais o leitor.
O fim do jogo.
Os livros provocam e se defendem sozinhos. Eles se aproximam de cada leitor e, eventualmente, o conquistam. O que escrevi acima são registros de meu combate singular com dois romances. Não são eles, nem seus autores, que jogam entre si, que vencem ou são derrotados. Mas o ofício infernal de Eáco, Minos e Radamanto existe, e, por conta disso, apenas um desses livros seguirá neste campeonato. Kopittke povoa sua história com mais de duas dezenas de personagens. Um excesso, mesmo que todos tenham alguma função no enredo. Como a história se concentra em poucos dias, o desenvolvimento da trama depende muito do acaso, com soluções demasiado artificiais e esquemáticas. Temas que poderiam tornar-se importantes, como culpa, emancipação feminina, justiça e redenção, são tratados muito superficialmente. Lourenço Cazarré domina melhor a maquinaria da escrita literária. Mesmo um sujeito que se irrite com a proposta de seu enredo reconhece que Cazarré sabe conduzir sua história com apuro técnico mais sofisticado e poderoso que aquele utilizado por Guido Kopittke. A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e Enchentes são dois livros que valem o tempo de leitura. Mas, com mil demônios, como as reflexões que fiz acima podem ser transformadas em um placar? Arbitrariamente, claro, como no futebol, o mais manipulável dos jogos coletivos.
PLACAR
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar 3 x 2 Enchentes
VENCEDOR
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, de Lourenço Cazarré
“Mesmo um sujeito que se irrite com a proposta de seu enredo reconhece que Cazarré sabe conduzir sua história com apuro técnico mais sofisticado e poderoso que aquele utilizado por Guido Kopittke. A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e Enchentes são dois livros que valem o tempo de leitura. Mas, com mil demônios, como as reflexões que fiz acima podem ser transformadas em um placar? Arbitrariamente, claro, como no futebol, o mais manipulável dos jogos coletivos.”
Essas últimas e sinceras linhas serviram para colocar ambos os livros em minha lista de leituras futuras, e também para elevar o Aguinaldo Medici Severino ao nível de árbitro literário FIFA em meu conceito! =)
Excelente partida. Excelente arbitragem. Parabéns a todos.
olá
grato pelas palavras gentis fabian, mas eu sou o menor dos anões desta paróquia de árbitros.
minhas leituras de outros livros (off champions leagues) está no http://guinamedici.blogspot.com/
bom divertimento.
Excelente resenha, Parabéns aos times e especialmente ao árbitro.
instigante resenha, fiquei com vontade de ler os livros.
Esse é o velho e cansado Guina.
Nós aqui da Boca do Monte já conhecíamos a sua capacidade de critico literário. Show de bola.
Um prazer ter chegado a este seu blogue.
Somos amigos no Facebook(Marques Irene).
Iremos nos encontrando.
Um abraço
So’ eu achei o jogo modorrento?
Nao teve replays dos melhores (ou piores momentos), so narracao, narracao….zzzzzzzzzzzzzzzzzz
Sou suspeita, obviamente. Mas achei o jogo interessante, Djegovsky. Será que foi a ausência de metáforas futebolísticas que não te agradou? Aproveito para comunicar que elas serão raras esse ano. Para não esgotar o modelo e valorizar a literatura. 🙂
Nah, nao vou chorar pela falta de metaforas futebolisticas. Aquilo estava ficando meio chato mesmo.
A questao eh que, por mais informativa que fosse, a narracao nao mostrou o jogo. So falou sobre ele. Foi como uma mesa-redonda pos-jogo, mas, como ele nao colocou nenhum trecho dos livros, ficaram faltando as imagens.
Apenas ler que o Inter venceu o Gremio por 2X1 e’ bem diferente de ver os gols ou o compacto da partida. Para mim, foi isso que faltou.
Tou achando meio esquisito esse negocio da diretoria descer ate a arqubancada toda vez que alguem xinga a mae do juiz.
Pois quanto a isso, Diego, podes continuar achando esquisito… Mas continuarei me manifestando aqui quantas vezes quiser e da maneira que eu julgar apropriada. Não vem censurar, ok?
Pelo contrario. Longe disso. Eu fui censurado varias vezes na Copa de Literatura e achei ridiculo. Tanto que nunca mais entrei la depois que descobri que a coisa funcionava assim, so podendo se manifestar quem se comprometesse a nao discordar de nada.
Me manifestei agora justamente por temer que esse tipo de coisa venha a acontecer de novo, pois a diretoria (ou a policia?) aparecendo na arquibancada, pra mim, e’ uma forma de intimidar, de nao deixar a coisa rolar solta na torcida, mostrando sempre onde e’ que estao os limites.
Descer o cacetete e’ censura. Mas mostrar o cacetete e’ uma forma de dizer: fica na tua, nao me obriga a usar isso.
Enfim, fiquei ressabiado.
Bom, Diego. Da minha parte reafirmo: eu não deixarei a caixa de comentários. Não por achar que preciso “regular”. Mas porque seria injusto não me deixar participar do projeto que eu ajudei a criar. Em segundo lugar: no Gauchão, assim como na Copa, há moderação. E, nos dois casos, comentários que ofendam a “pessoa” do juiz serão sinalizados. Pode falar do jogo, da arbitragem. Mas é extremamente complicado quando um comentarista entra no site para ofender o juiz, que aceitou participar e está colaborando com sua leitura e resenha. Quer falar sobre literatura? Sobre os livros? Volte sempre.
Bom, acho que a analogia com futebol esta’ cada vez mais distante mesmo.
Esta’ mais para o torneio de Wimbledon ou qualquer outro esporte chato que os britanicos amam.
Vamos a ver. Djegovsky, algum problema? Se tiveres alguma dúvida é só perguntar. Até logo.
Creio que ja expus meu sentimento la em cima. De resto, vou bem, obrigado.