JOGO 8
Aurum Domini – O ouro das Missões,
de Simone Saueressig (Artes e Ofícios / 2010)
x
A amante do lobo,
de Ana Paula Fohrmann (Libretos / 2010)
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JUÍZA
Amanda Zampieri – É estudante de Bacharelado em Letras (tradução do inglês) da UFRGS e já trabalhou como bolsista de iniciação científica na área de Literatura Comparada (uma de suas grandes paixões). Atualmente, trabalha com material didático de literatura brasileira. Escreve no blog http://thesunsets.wordpress.com. Twitter: @thesunrises.
O jogo
O romance A amante do lobo, escrito em forma de diário, foca em uma fase da vida de sua personagem principal: uma professora universitária de Literatura em Paris. Ela é uma mulher de 40 anos, independente e amante de um homem casado, com quem se encontra esporadicamente em diversas cidades da Europa. O romance é um recorte do momento em que ela, cansada de se ver presa a esse relacionamento infrutífero, decide se afastar para sempre dele. O motivo que a leva a tomar essa decisão é o aparecimento de um novo amor, André, o estudante mais novo que a leva a conhecer uma vida perfeita a dois.
O romance se aproxima, na realidade, de uma novela, não apenas em razão do número de páginas (sem entrar em detalhes sobre a definição de novela, narrativa longa, romance, etc.), mas em função do desenvolvimento do enredo e dos personagens. A narrativa está focada na personagem principal sem aprofundamento dos personagens secundários. Imaginei (ingenuidade minha, talvez?) que o personagem referente ao lobo merecesse algum destaque além da menção superficial aos atos que levam a personagem principal ao desassossego e à depressão.
Percebe-se que ela é uma mulher contemporânea, que construiu sua carreira a partir da defesa de seus pontos de vista e que isso fez dela uma mulher forte profissionalmente, que conseguiu garantir seu lugar ao sol a troco de muito esforço, trabalho e dedicação. Porém, ao mesmo tempo em que se fortalece academicamente, acaba por se tornar emocionalmente presa a um homem que não poderá lhe oferecer qualquer tipo de segurança. Logo, acredito que haja uma contradição na condição dessa personagem: a mulher independente, intelectual, que não tem medo de exprimir suas opiniões, dotada de um poder de observação e senso crítico mordaz que perde sua identidade e seu discernimento por causa da relação com o homem que a “vampiriza”.
Entre a espontaneidade do colega, a exposição do ego de alguns e o bate-papo instigante de muitos outros, correu um comentário de que a América do Sul continuava sendo um subcontinente formado pelas chamadas “Repúblicas da Banana”. Não conseguia, realmente, compreender essa forma única de pensamento que se baseia numa categorização imbuída de preconceito. Rejeitava toda espécie de conservadorismo e de intolerância, sobretudo ditada por um grupo que representa parte da intelectualidade de um país. A falta de atitude de refletir por si só me incomodava muito. Abominava qualquer forma de reprodução do pensamento sem caráter crítico. Em minha consolidada certeza de não querer viver morrendo, continuava, isso é certo, a bater a cabeça na parede e quase a me esborrachar inteira em busca daquilo que considero “o meu próprio modo de viver e ver as coisas”. É claro, há sempre um preço a se pagar. (FOHRMANN, 2009: 27)
No entanto, o romance em si não responde a questão proposta na contracapa da edição: “Por que mulheres independentes e contemporâneas se tornam presas fáceis de homens envolventes?”. Em primeiro lugar, porque temos apenas o ponto de vista da narradora; segundo, é apenas um recorte de sua vida e, em terceiro, há a construção de uma imagem difusa do antagonista “lobo”. Além disso, a personagem simplesmente sai de um relacionamento para outro, como se a troca de um relacionamento “doentio” por um “sadio” resolvesse o problema dela com ela mesma.
Arriscaria, ainda, fornecer uma resposta à pergunta proposta na contracapa: no mundo contemporâneo, a maioria dos homens (incluindo o “lobo”) vê os relacionamentos como descartáveis. Cumpre às mulheres não jogar esse jogo e abrir mão da dominação emocional causada pela insegurança masculina. Uma resposta que alteraria os rumos do romance, é claro, pois infelizmente, a personagem abre mão apenas do amante (o “lobo”) para se entregar ao outro personagem masculino, apenas invertendo o jogo de dominação, como se a identidade da mulher contemporânea dependesse da dominação da mulher pelo homem (mais fraco e menos experiente).
A proposta de Ana Paula Fohrmann é ótima no momento em que evidencia tabus no relacionamento entre homens e mulheres, como a dominação (como enfatizado na própria descrição do romance), porém, acredito que o desenvolvimento dos demais personagens transformaria a narrativa, enriquecendo-a e aliando a proposta do romance no que diz respeito aos jogos de dominação em um relacionamento amoroso.
Os pontos altos do romance, sem sombra de dúvida, são as descrições poéticas tanto do estado emocional da personagem principal quanto dos cenários europeus pelos quais ela passa.
Ao fim do romance, tem-se a impressão de que o “lobo” não fez muita diferença na narrativa e que houve a superação por completo a partir do momento em que ela e André passam a se relacionar seriamente. Aliás, o personagem “deus ex-machina” de André parece um tanto inverossímil, assemelhando-se a um personagem de comédia romântica.
Diferentemente do romance anterior, Aurum Domini – O ouro das Missões, de Simone Saueressig, é escrito sob um viés mais realista, cujo foco encontra-se justamente no desenvolvimento do enredo e de seus personagens. Nele, cada mínimo detalhe (e são muitos) faz parte da trama e se encaixa nela com perfeição.
Seus personagens são bem desenvolvidos, retratando os costumes e a linguagem da segunda metade do século XIX no Rio Grande do Sul, suas cidades em crescimento, suas vilas abandonadas após inúmeros conflitos e saques e, claro, seu pampa, ora acolhedor, ora ameaçador.
A narrativa envolvente remete ao universo de Simões Lopes Neto nos moldes narrativos de Erico Verissimo aliada a uma riquíssima pesquisa historiográfica. O romance, dividido em duas partes, narra a história de amor entre Adélia, órfã em decorrência do brutal assassinato de seus pais, e Francisco Livre (o Chico), índio missioneiro. Adélia é acolhida na casa dos padrinhos Adriano e Leonor e prometida em casamento a Bruno, filho do casal. Porém, quando o rapaz retorna da guerra, Adélia reconhece em seu rosto o assassino de seus pais.
Que motivos teria Bruno para matar covardemente os pais de Adélia? A resposta está em um segredo confiado ao pai da moça, anos antes, sobre o paradeiro de um tesouro escondido pelos jesuítas em São Miguel das Missões, em um local chamado a Casa de M’bororé, que faria muito rico quem o possuísse.
Adélia procura Chico, porém Bruno imagina que foi o índio quem a seduziu. Denuncia o peão, chicoteia-o até quase matá-lo e o envia, preso ao cavalo, à sua sorte. Adélia, então, imaginando que Chico está morto, corta as longas tranças, veste-se com roupas de gaúcho, rouba o mapa que estava sob a posse de Bruno e foge para o pampa, em busca do tesouro e da vingança dos pais e do índio amado. A partir de então, delineia-se a busca pelo tesouro e a luta entre o casal de amantes (Chico não estava morto) e Bruno e seus comparsas.
Nota-se, com o desenrolar da trama, a transformação de Adélia: de menina frágil, vinda da cidade (São Leopoldo) para a vida dura como uma fugitiva no pampa (que lhe rendeu o apelido de dona Onça pelos tropeiros com quem ela faz amizade ao longo de sua jornada).
Acredito que Simone Saueressig não apenas recuperou a tradição gaúcha dos romances históricos, como também dá seguimento às narrativas que contam a história da mulher gaúcha e suas provações, mostrando o outro lado das guerras, do ambiente doméstico e do papel da gaúcha na sociedade daquela época. O respeito com que a heroína é tratada pelos parentes é singular, como visto no diálogo entre Quirino (avô de Bruno) e Chico, sabendo que o índio nutria afeição especial por ele:
(…) Vou-lhe dizer uma coisa: eu sei muito de cavalo. Mas sei mais ainda de gente. Então me escute: Dona Adélia vai casar com quem ela quiser. Tenho pena do coitado que se casar com ela sem querer. Tenho pena. Espero que minha filha tenha a sensatez de ver isso a tempo e impeça alguma tolice por parte do avoado do Bruno, que é bonzinho, é meu neto e tudo o mais, mas se bem me lembro do que me contaram as negras, de mulher ele não entende nada. (SAUERESSIG, 2010: 58)
Além disso, a autora mostra a partir das descrições do cenário o outro lado das conquistas gaúchas, feitas a custo do derramamento de muito sangue indígena, no papel dos índios remanescentes que permanecem nas regiões isoladas das missões em condição de miséria.
Embora os dois livros sejam bons (cada um à sua maneira), é inegável que O ouro das Missões mereça a vitória pela sua riqueza narrativa, seus personagens cativantes, sua pesquisa histórica e, claro, seu enredo emocionante.
PLACAR
Aurum Domini – O ouro das missões 3 x 1 A amante do lobo
VENCEDOR
Aurum Domini – O ouro das missões, de Simone Saueressig
Bela resenha. Fundamenta os motivos pelos quais a juíza decidiu por um livro em vez do outro, e expõe os argumentos de forma clara.
”…é inegável que O ouro das Missões mereça a vitória pela sua riqueza narrativa, seus personagens cativantes, sua pesquisa histórica e, claro, seu enredo emocionante”.
Parece comigo defendendo quais devem ser as características de uma boa obra literária. rs
Parabéns pela[s] resenha[s], Amanda.
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(FOHRMANN, 2009: 27)?!
(SAUERESSIG, 2010: 58)?!!!
Ah, agora que fui ver que a resenhista e’ estudante da urghs.
Ta perdoada.
ABNT no gauchão também!
(Em partes. Faltou a bibliografia ao final do texto, hahaha!)