JOGO 26 – Cisão x A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

JOGO 26

Cisão,
de Lívia Sganzerla Jappe (7Letras / 2009)
x
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar,
de Lourenço Cazarré (Bertrand Brasil / 2009)

JUIZ
Airton Ortiz – É jornalista, escritor e fotógrafo. Nessa ordem. Criador do jornalismo de aventura, onde é repórter e protagonista da reportagem, já percorreu meio mundo caçando aventuras que rendessem boas histórias para contar aos seus leitores. Até agora, vem dando certo: já publicou 15 livros! Ganhou diversos prêmios jornalísticos e literários (o que dá certo charme) e seus livros frequentam as listas do mais vendidos (o que dá dinheiro). Se escreve bem? Ah, isso ele acha que só saberemos na próxima geração, quando espera estar bem longe daqui.

Concorrentes 

Cisão, da estreante Lívia Sganzerla Jappe, e A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, do veterano Lourenço Cazarré, só têm em comum o fato de que eu preciso decidir quem vai continuar no campeonato. Um texto se alicerça na linguagem, o outro no enredo. Cisão tem 66 páginas, quase a metade em branco; A misteriosa… tem 176 páginas e os capítulos se sucedem na mesma página. Cisão, assim na capa de um livro, não quer dizer nada. A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, na capa do livro, já entrega a história. A capa de Cisão é minimalista, a de A misteriosa… apresenta um detetive examinando com uma lupa os contornos de um corpo estendido no chão. Quer dizer: seja qual for o resultado, será injusto. Como todo Gre-nal.

O jogo

Assisti à estreia do Brasil na Copa do Mundo de 2006 em San Cristóbal de Las Casas, no Estado de Chiapas, sul do México. Estávamos num bar, em frente a uma tevê, eu e um grupo de torcedores mexicanos. Todos esperavam que o Brasil desse um show, queriam ver o Ronaldinho brilhar; nada menos do que uma goleada. No fim do jogo, uma grande decepção. Não que o Brasil tivesse jogado mal, não; jogou bem. Até ganhou. Mas, dada a fama que precedia o time, a torcida esperava mais.

Lembrei-me dessa partida quando terminei de ler Cisão. O livro vem com uma cinta informando que se trata de um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura – Autor Estreante, traz na contracapa um elogio de Assis Brasil e na primeira orelha uma rasgação de seda ainda maior de Reynaldo Jardim, antevendo na autora alguém do porte de Mario de Andrade e Guimarães Rosa. Nada menos. Por isso, no fim da leitura, fiquei um pouco decepcionado. Não que o livro seja ruim, não; o livro é bom. Mas, dada a fama que o precedia, eu esperava mais.

Certos times entram em campo e nos enchem os olhos, uma jogada genial a cada passe. Seus jogadores dão meias-luas, fazem embaixadas e balõezinhos, lançam de letra e cobram faltas de trivela; só não acertam o gol. Como Cisão:

Theodoro, telúrico, espicaçou-lhe a fé:
─ Não vilipendies as pupilas. Carregas o mal também.
Ela, vinácea. A esgrima lhe faltava, assim como lhe faltavam complacência e o levante necessário para mercadejar como lhe queria o outro. Aquele. (início do livro)

A linguagem é bem trabalhada, de encher os olhos, recheada de toques de letra e bolas difíceis, uma jogada ensaiada a cada linha, mas o enredo não avança.

Fendada esta a rota do teu medo na liquidez dos meus deslizes. Manejo a minha retina para a cena do derreter ao tocar os teus olhares. Sentimos, sem inocência, o pesar do nosso rodar; aquela tua constância que irrita a minha insana alquimia. Eu te desejando numa artéria viva; tu devolvendo o rugir do meu silêncio. Fúria em mim; compósito de suavidade em ti.

Fica-se com a impressão que o treinador dá mais importância ao esquema tático do que à verticalidade da história.

Por ora, Inácia não mais vivia entre seus pares e ímpares.

Quando, ao fim de cada capítulo, esperamos que algo aconteça, a bola bate na trave e volta ao meio-campo, um eterno recomeço. E, como diz a canção, “bola na trave não altera o placar”.

Existem escritores que preferem esse tipo de time, e não lhes tiro a razão. Deve dar orgulho ver o time encher os olhos da crítica, os entendidos rasgando-se em elogios ao domínio que eles têm da técnica de escrever um livro difícil, em como montar um time criativo.

Mas e a torcida, como fica? Claro, a torcida, pelo menos a mais esclarecida, também gosta de ver um time bem escalado, fazendo filigranas em campo. É um deleite, sem dúvida. Mas, ao final da partida, quando o árbitro fecha o jogo, dá certa frustração ver que o time não avançou na tabela. Sai da rodada na mesma posição que entrou. Isso, no mundo atual, é um desperdício de talento.

Reine, em mim, a remissão de todas as palavras. Sejam teus os pontos. Meus, os teus demônios. Tua, a minha insensatez ideológica. Eu te enterro para que todos os sempres se percam neste mundo marcado de Deus. E nada mais tem a dizer esta fábula inversa. (final do livro)

Ideal seria fazer o time jogar bem e ainda ganhar o jogo, avançar na história. E, se possível, de goleada, fazendo história. Mas aí já seria exigir muito de uma treinadora estreante.

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar 

Lembram da seleção do Parreira, aquela que não fazia jogadas de efeito, mas foi campeã do mundo? Pois é, a gente nem entendeu bem por que ganhamos, mas saímos encantados da Copa. A misteriosa morte de Miguela de Alcazar também me fez sentir assim: gostei do livro, e nem entendi bem por que gostei. Talvez porque a história avançasse sempre na vertical, em busca do desfecho na linha de fundo. Não importa, o fato é que gostei. Saí do estádio satisfeito.

─ Como assim? ─ Aroeira agitou-se. ─ O senhor tem um suspeito?
─ Tenho mais do que um suspeito ─ respondeu Dax. ─ Tenho o nome do culpado.
Vagarosamente, o americano estendeu o seu braço. Depois, aos poucos, espichou o indicador na direção de Joaquim Manoel Batota.
─ Foi o português. Foi ele quem levou a comida até o quarto da velha. Ele está mais quieto do que guri cagado porque sabe que tem culpa no cartório. Foi ele quem meteu arsênico na comida da velha!
─ Bem sacado! ─ exclamou Aroeira. E pôs a mão no ombro do gerente do hotel. ─ Considere-se preso! É você o principal culpado, sem dúvida.

Romances policiais, mesmo satíricos, são assim mesmo: um cadáver na primeira página (no caso, na página 57 ─ um desperdício!) e o assassino preso na última. Se bem que, nesta história, ninguém ficou na cadeia. Mas, em se tratando de um crime acontecido em Brasília, não se há de recriminar o autor por deixar os bandidos soltos.

Logo depois começaram a explodir os telefonemas dos embaixadores na casa do secretário de Segurança Pública. O homem resistiu o máximo que pôde. Meia hora ou quarenta minutos. Ainda no início da madrugada, os escritores foram liberados. Seguiram diretamente para o aeroporto e embarcaram num jatinho fretado com destino ao Rio de Janeiro. Junto com eles seguiu o corpo de Miguela de Alcazar.
Batota e eu ficamos em cana até as dez da manhã.

Em casa, assistindo ao videoteipe, perdi um pouco do entusiasmo. Na releitura da história, me dei conta de que havia uma série de bolas fora, jogadas toscas e passes errados; que no campo passaram despercebidos por causa dos gols em profusão. Jogadas boas mesmo, aquelas de encher os olhos, foram poucas.

Também, nem era mesmo essa a intenção do treinador:

Comecemos do início. Não é moderno, sei. Escritores sofisticados preferem contar suas histórias de trás para diante ou aos saltos, indo e voltando. Uns mais arrojados escrevem até mesmo livros que não têm história nem personagens. Mas sou jornalista de profissão e, como todos do meu ofício, pratico o texto claro, legível e cronológico. (início do livro)

A promessa foi cumprida. O time jogou de forma clara, legível e cronológica. E de times assim, como aquele do Parreira, não se pode exigir muito brilho. O importante é que, do ponto de vista do leitor, ele sai do estádio satisfeito.

Literatura não é só isso, certo, mas sem isso ─ leitores! ─ ela não se completa. Torço por este tipo de time ─ porque entre autor e leitor sempre torço pelo leitor ─, por isso gostei mais de ler A misteriosa morte de Miguela de Alcazar do que Cisão.

O que não quer dizer nada, é só uma opinião. E opinião é como bunda: cada um tem uma. E aqui, para sorte de um livro e azar do outro. Bem: azar nada! Ninguém deve levar as coisas assim tão a sério.

Placar 

Embora os gols de Cisão tenham sido mais bonitos, teve um de letra, A misteriosa… fez mais gols, um deles em impedimento. Mas o juiz confirmou, que se há de fazer? E, em futebol, como em qualquer concurso literário, o que interessa é bola na rede. Mas, pensando bem, 3 x 2 pra A misteriosa… ficou de bom tamanho.

PLACAR
Cisão 2 x 3 A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

VENCEDOR
A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, de Lourenço Cazarré

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4 respostas para JOGO 26 – Cisão x A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

  1. Bom. Como li “A misteriosa morte de Miguela de Alcazar” – afinal fui juiz da primeira partida da qual esse livro participou (https://gauchaodeliteratura.wordpress.com/2011/07/14/jogo-4-%E2%80%93-a-misteriosa-morte-de-miguela-de-alcazar-x-enchentes/) – e li “Cisão” (http://guinamedici.blogspot.com/2010/09/cisao.html) só me resta cumprimentar Airton Ortiz pela resenha bem humorada e cheia de informações e reflexões. Ele tinha uma tarefa complicada no apitoe soube apresentar aos leitores idéias e digressões realmente poderosas. Parabéns.

  2. noia kern disse:

    Ortiz, parabéns.
    A meu ver, você se revelou como resenhista. Teu gosto pelo futebol te permitiu mesclar muito bem e, com muito humor, a literatura, a ficção e a vida real.

  3. Luiz Paulo Faccioli disse:

    Bela e divertida resenha. Não conhecia mais esse talento do meu amigo Ortiz. Quanto ao Cisão, pelos trechos reproduzidos: me poupem!

  4. Pingback: Gauchão de Literatura: jogo Apitado por mim | Blog do Ortiz

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