JOGO 33 – Suíte dama da noite x Desculpem, sou novo aqui

JOGO 33

Suíte dama da noite,
de Manoela Sawitzki (Record / 2009)
x
Desculpem, sou novo aqui,
de Carlos Moraes (Record / 2009)

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JUIZ
Rodrigo Rosp – Porto-alegrense nascido em 1975, graduado em publicidade e propaganda e pós-graduado em estudos linguísticos do texto (ambos na UFRGS). Publicou os livros de contos A virgem que não conhecia Picasso (2007) e Fora do lugar (2009) e organizou a antologia 24 letras por segundo (2011), todos pela Não Editora. Trabalhou com redação e revisão; hoje, é editor e sócio da Dublinense e da Não Editora. Como atacante, foi artilheiro nas duas conquistas da sua turma nas Olimpíadas do João XXIII (1991 e 1992) e também em um inesquecível campeonato da Fabico em 1997. Seu futebol assemelha-se ao de Jonas antes de aprender a jogar.

Para começar, queria dizer que esta resenha foi escrita do ponto de vista de um leitor, contemplando, claro, alguns aspectos técnicos, mas privilegiando sobretudo o percurso de leitura.

Antes de começar a ler, no entanto, tem aquele momento de olhar, admirar os livros. Sobre a parte gráfica, nenhuma das capas me empolgou; a de Suíte dama da noite tem um acabamento mais interessante, mas neutra, não diria que chegue a chamar a atenção. A de Desculpem, sou novo aqui me pareceu um tanto pobre. E em relação ao projeto gráfico do miolo, os dois livros são idênticos: trata-se do padrão da Record, que, confesso, acho um dos mais agradáveis para a leitura.

Dei mais uma olhada na orelha e na contracapa e então decidi começar por Suíte dama da noite, que me interessou muito mais.

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Suíte dama da noite conta a história (mais que isso, os sentimentos) de uma jovem bipolar chamada Júlia Capovilla. O livro mostra a forma como Júlia encara os fatos, ora passando por momentos de depressão extrema (semanas sem sequer sair de casa), ora tomada de intensa euforia. O livro começa com o falecimento de Leonardo, e a partir dessa notícia Júlia tenta entender tudo aquilo por que passou com ele e busca um novo caminho para sua vida.

A impressão geral sobre o trabalho de Manoela Sawitzki é muito boa. Nota-se que a autora tem recurso técnico. Com leve predominância de ação interna sobre ação externa, o texto pode afastar aqueles leitores ávidos apenas por uma história bem contada. Suíte apresenta não isso, mas um mergulho dentro de uma personagem que alterna reflexão com ação.

Pensando nisso – na questão de ritmo que sempre aparece em um texto com bastante ação interna –, fiquei com a sensação de que o livro custa um pouco a engrenar. É divido em quatro partes, e as duas primeiras, sobretudo a segunda, são tomadas de ação interna. A leitura fica mais lenta. No meu caso, que lia todas as noites antes de dormir, o sono vinha rápido; evidente que não é culpa da autora eu resolver ler depois de um árduo dia de trabalho – creio que os livros sejam escritos para leitores descansados –, mas, enfim. Ainda assim, eu voltava para o livro com bastante ânimo noite após noite.

Quando chega a terceira parte e o ritmo acelera, Suíte fica ainda mais interessante. Apesar de ter se detido principalmente ao estudo de uma personagem, Manoela mostra habilidade em diversos aspectos, como descrição de cenários e diálogos (muitas vezes o ponto fraco de autores que têm uma prosa mais consistente). Vamos a um exemplo: 

A clínica, localizada no quarteirão mais nobre da rua mais nobre do bairro mais nobre da cidade, era um desses lugares que parecem planejados para que ninguém se sinta totalmente à vontade. Os mármores esparramados sobre o piso, escadas, pilares e esculturas de nus esquartejados, que impingiam ao grotesco um refinamento doentio; a música medieval ininterrupta; as funcionárias uniformizadas, penteadas e silenciosas como monjas; tudo tão cercado de pompas e artifícios, tudo em tal perfeito funcionamento, e aquele nome sempre mencionado com quase adoração: o doutor Meireles. Júlia tentava controlar a ansiedade e o desconforto enquanto só podia pensar que a qualquer momento o teto se abriria e o tal doutor Meireles surgiria num carro de fogo.

Como leitor, adoro deparar com uma frase como essa, com harmonia e qualidade estética: “que impingiam ao grotesco um refinamento doentio”. De resto, o trecho mostra como a autora faz uso do discurso indireto livre, em que o narrador em terceira pessoa conta o que a personagem vê como se fosse ela. A técnica é usada com habilidade e permite que o leitor conheça melhor Júlia. Nesse sentido, consegue dar profundidade à personagem com momentos como esse:   

Sorria com a mesma doçura para o marido, o guarda de trânsito, a velha síndica, a pomba suja da calçada – mentia outra vez por desistência e porque desconhecia outro remédio para aquela ferida, outro mecanismo para enfrentar uma vida que também mentia para ela.

Vale dizer que não só de Júlia vêm os pensamentos, mas também daqueles que dividem com ela as páginas (e um pouco mais), como o marido Klaus: 

Acreditava conhecer todos os medos da esposa e chamava isso de intimidade.

Talvez essa frase seja típica da prosa de Manoela, interessada em investigar as relações, os sentimentos, em buscar uma forma diferente de expressar a dor, a angústia, o tédio; às vezes se aproximando de uma prosa poética, sempre forte em metáforas, com ritmo na leitura e riqueza de vocabulário. Suíte marca um gol por dar grande valor à linguagem e fazer dela um recurso bem-utilizado.

Seria sempre um objeto deslocado naquela casa clara, decorada na medida exata de seus falsos pudores.

Esse é o estilo do texto, com trabalho de linguagem e com ideia, e a cada duas ou três páginas pode ser encontrada uma frase daquelas de pendurar na parede (ou usar de epígrafe). Isso faz a torcida vibrar.

Suíte dama da noite marca mais um tento por conseguir um interessante equilíbrio entre o dito e o não dito. Essa tarefa de escolher que fatos/cenas vão estar nas páginas do romance e o que vai ser deixado para o leitor concluir é sempre complicada. Diria que há 90% de acerto. Senti falta de saber um pouco mais sobre como se deu a morte de Leonardo, por exemplo. Por outro lado, não ter dado mais detalhes sobre o período de envolvimento de Júlia e Klaus me pareceu uma decisão excelente. De qualquer forma, o percurso do leitor é de descobertas e de construção – ele precisa participar, envolver-se.

Outro gol a favor de Suíte é uma legalzice formal, algo simples, mas que me agradou muito: o título de cada capítulo é exatamente o fim da última frase dele. E são frases fortes, pensadas. Imagino o quanto a autora teve trabalho para conseguir esse resultado. Por exemplo: o título de um capítulo é “tão inexplorado quanto ela”. E, oito páginas depois desse título, o capítulo se completa com “Júlia não temia, porque nenhum outro lugar poderia ser tão inexplorado quanto ela”.

Em relação aos problemas do livro, há poucos e ficam diluídos. Às vezes, a autora pesa na adjetivação (“pontualidade irrepreensível”, “normalidade tediosa”, “peso imensurável”); outras vezes, aparece algum clichê (“pagava um preço alto”, “o ronco agitado dos motores”). No entanto, esses deslizes (passes errados) são poucos, e isso é normal de acontecer em 224 páginas (ou 90 minutos); nenhum deles compromete (não proporcionam contra-ataque ao adversário), e a impressão ao fim da leitura é de ótima técnica por parte da autora (dos jogadores do time).

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Desculpem, sou novo aqui já começa mal, na primeira frase:

E quando o ônibus começou a entrar enfim na cidade de São Paulo, da barriga me foi subindo aquela dorzinha fina e morna, dessas que a gente não sabe se é puro medo ou…

Aí eu penso “dessas que a gente? a gente quem? quem te deu liberdade pra me incluir em qualquer coisa logo na primeira frase?”. E me lembro de um primo de uma ex-namorada, que mal me conheceu e veio com “Digão” pra lá, “Digão” pra cá. Na boa, “Digão” o cacete. Odeio essa falsa intimidade, esse “amigão” de Régis Rösing, sorriso e bom-dia no elevador. Logo de cara, percebo que o livro de Carlos Moraes vai ser aquele vizinho que tem sempre uma tiradinha no elevador. E não consigo fingir, costumo retribuir com má vontade, desprezo, falta de educação mesmo. Não preciso passar do primeiro capítulo pra ver que esse é o clima do livro. Logo confirmo:

No juízo final, que trombetas coisa nenhuma, vai ter um telefone na madrugada, cagaço maior não tem. Não respondo e faço cara de brabo.

Dessa forma, minha antipatia pelo personagem-narrador do livro, um ex-padre gaúcho que chega a São Paulo, é total. Logo ele é definido como “o gaúcho tirador de sarro”. E lá vem ele com sua filosofia engraçadinha: “Kombi é o tipo de criatura que sabe o que faz. Alguém já viu uma Kombi duvidando?”. Cara de brabo pra ele. E lá vem mais: “uma menina vibrante me tratou com um otimismo cheio de palavras em inglês, que eu não só não entendia direito como devo ter ficado até um pouco ruborizado quando ela, na saída, disse que queria muito fazer um follow-up comigo”. Nem riso falso consigo nessas horas.

Ok, eu tento parar a leitura, me acalmar e dar mais uma chance a ele. Se eu estou diante de um ex-padre, devo oferecer a outra face (“haha, gostou, gaúcho tirador de sarro?”). Desculpem, vou me acalmar e tentar ser mais racional na análise. Juro.

Ao contrário da personagem de Suíte, que jorra sentimentos, o de Desculpem não sai da superfície. Ele passa algumas semanas perambulando por uma cidade nova, atrás de emprego, depois de sair da prisão. E onde está a dor do personagem? A angústia, a miséria? Não aparecem. Elas ficam escondidas enquanto ele segue fazendo comentários “divertidos” sobre a cidade e as situações.

(se for pra ter uma conversa em elevador, eu prefiro que seja com uma jovem bipolar que com o engraçadinho. Sem bem que essa jamais puxaria conversa.)

Se a narrativa não entra no, digamos, âmago do personagem, poderia compensar isso com um olhar cínico, irônico, sarcástico sobre as coisas, certo? Que nada. As descrições não passam de “Melécio Peña, um espanhol pálido e agitado como um espanhol”. Ou sobre duas mulheres: “uma morena cheia de formas” e “a cintura fina a salvava de uma certa, digamos, robustez geral”. Previsível e insosso como o meio de campo da seleção da Suíça.

A preocupação com a linguagem não existe. O personagem é capaz de, na mesma frase, ir de um “acordei já de tardezita” para “o quarto do hotel se me afigurava”; no meio de uma narrativa de predominância oral, surgir com “de alvas vestes paramentado”. Isso quando não vem com clichê de linguagem, como “a manchete de um jornal me trouxe de volta à dura realidade”. Assim, de canela, acontece um gol contra.

O que me chama atenção no livro é a total ausência de uma proposta estética, de um projeto, de ser pensado como literatura. Dá a sensação de que um ex-padre resolveu narrar sua história e, assim, o texto é tão cheio de problemas como o de um ex-padre. Há trocas de tempos verbais constrangedoras, problemas de pontuação. Nesse sentido, o texto parece não ter passado por revisão. Ou mesmo por edição: qualquer editor perceberia os acidentes na linguagem (coisa de fácil correção). E isso sem falar de repetições de palavras, rimas internas e outros problemas que só os mais chatos percebem (mas eu sou um deles).

Minha relação com o livro passa a ser como a com aquele jogador que, logo no início, erra três ou quatro lances de forma medonha. A torcida começa a vaiar qualquer coisa que ele faça, mesmo que não seja tão ruim assim. Não adianta, está marcado. Pra ele, só resta protagonizar um lance genial que resulte em gol. Senão, vai ser substituído no intervalo.

Assim se dá minha implicância com o Desculpem. Pode ser que tenha alguns lances bons que sequer percebo, pois já perdi a paciência desde muito cedo. Ainda que eu esteja cada vez mais desinteressado pela narrativa, ela avança com fluidez, o que talvez seja o único mérito. Mas eu já estou sentido vontade de abandonar o livro.

(sou completamente incapaz de abandonar um filme; por pior que seja, eu sempre fico até o fim, jamais deixei um filme pela metade; já um livro é diferente, e a quantidade de livros abandonados que colecionei é grande; imagino que seja pelo fato de que no filme basta ficar de olhos abertos até o fim, e no livro é preciso participar – só que, muitas vezes, não me interessa participar.)

Assim eu sigo. Já havia sido avisado na página 13: “boa parte dela [cidade de São Paulo] gira em torno do Corinthians”. Nesse momento, eu rezo (perdão, padre) pra que isso seja uma frase solta, que não entre na história. Fico a salvo do Corinthians até descobrir que o personagem, no seu primeiro dia de emprego como jornalista, decide fazer uma reportagem sobre o Corinthians. E quando ele termina o capítulo 5 falando do Corinthians e começa o capítulo 6 dizendo que “o Corinthians custou a mostrar sua verdadeira face”, eu silenciosamente fecho o livro e o abandono. Desculpem, mas não sou o público-alvo.

***

Interessante observar a distância e a oposição que há entre as propostas dos livros, representadas por seus protagonistas. Mas não é só isso. A consistência e a habilidade mostradas em Suíte dama da noite são muito, muito superiores ao que apresenta Desculpem, sou novo aqui. Antes mesmo do fim do primeiro tempo, o placar já é de 4 x 0 sem muito esforço. E o juiz encerra a partida por aqui mesmo.

PLACAR
Suíte dama da noite 4 x 0 Desculpem, sou novo aqui

VENCEDOR
Suíte dama da noite, de Manoela Sawitzki

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8 respostas para JOGO 33 – Suíte dama da noite x Desculpem, sou novo aqui

  1. Não conheço todas as regras da disputa, mas pode o juiz encerrar o jogo desse modo? Ainda que não lhe tenha caído nas graças e lhe parecido o que descreve, um direito a ele atribuído, por ter sido indicado para arbitrar, não ter lido todo o “Desculpem” aparece como quebra de contrato.

    • Rodrigo Rosp disse:

      Oi, Adroaldo!

      Bom, o que rolou nessa resenha foi uma espécie de simulação do ponto de vista do leitor. Claro que li o livro até o fim, só quis dizer que, como leitor, teria abandonado naquele momento.

      Se o desenrolar da leitura a partir da página em que “parei de ler” tivesse apontado alguma coisa diferente das que coloquei na resenha, eu teria certamente feito de outra maneira.

  2. Athos Ronaldo Miralha da Cunha disse:

    Abaixo um fragmento do jogo 18 sobre “Desculpem, sou novo aqui”

    “Essa voz narrativa bem-humorada e irônica/autoirônica é um dos pontos altos do romance, muito bem concatenada com o discurso coloquial, o uso de gírias e termos de época, além de referências tanto do universo popular quanto do erudito (“Pessoinha foi embora mais leve e eu me preparei para mais um domingo de Bach e Corinthians”).”

    Só para colocar lenha na fogueira.

    A propósito, eu não li o “Desculpem”, mas li o “Suíte” e concordo com análise feita na resenha.

  3. Magali Lippert disse:

    Acho importante não perder de vista a grande “sacada” de Suíte: a organização da narrativa é o espelho da bipolaridade da personagem principal. É o mais interessante da obra. Infelizmente poucos leitores percebem esse tipo de “cuidado” de um autor com a organização narrativa. Conforme escrevi na minha resenha, a narração se divide em depressão/euforia/depressão (claro que eu espero que o ritmo tenha sido armado intencionalmente!)… Não tive tempo de ler o “Desculpem”, pois estou “enterrada” em Pompéia e Dickens… De qualquer forma, gostei do resultado, acreditei no sucesso de Suíte desde o momento em que caiu nas minhas mãos!

    • Luiz Paulo Faccioli disse:

      Noutras palavras, o que Magali está dizendo é o seguinte: poucos são os leitores capazes de descobrir a grande sacada que a resenhista descobriu…
      Menos, Magali, menos.

      • ulalá. só mesmo o luiz faccioli para, com bom humor e olho afiado, dar devidas dimensões as coisas.

      • Magali Lippert disse:

        Nossa!!! Confesso que não tinha pensado nisso!!! (risos…) não era minha intenção! Nem sou resenhista profissional! “Desculpem sou nova aqui!” Só queria valorizar mais os autores, lamento se não me expressei bem…

        • Luiz Paulo Faccioli disse:

          Nem esquenta, Magali! Há sempre um chato tentando puxar o tapete do resenhista… Bem-vinda ao time. Abraço.

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