JOGO 42 – O gato diz adeus x Três traidores e uns outros

JOGO 42

O gato diz adeus,
de Michel Laub (Companhia das Letras / 2009)
x
Três traidores e uns outros,
de Marcelo Backes (Record / 2010)

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JUIZ
Carlos Henrique Schroeder – É romancista, contista e dramaturgo. É autor de A rosa verde (UFSC), Ensaio do vazio (7 Letras) e As certezas e as palavras (Editora da Casa), vencedor do Prêmio Clarice Lispector 2010 e finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura.  Em 2010, ganhou a Bolsa Funarte de Criação Literária. É editor da Editora da Casa/Design Editora e curador do Festival Nacional do Conto. www.carloshenriqueschroeder.com.br

Antes da bola rolar

Segundo o escritor argentino Alan Pauls, “todo relacionamento já contém em si a própria separação”. É justamente esse o tema que permeia Três traidores e uns outros, do Marcelo Backes, e O gato diz adeus, do Michel Laub. E essa é a única coincidência. Dois livros tecnicamente distintos, e graficamente também. O livro de Backes segue o padrão da editora Record: livros com capas duvidosas, o miolo sempre com o mesmo projeto gráfico, o mesmo espaçamento, e aquela impressão lavada. Já a Companhia das Letras vai um pouco melhor nesse quesito, caprichou na capa e miolo de Laub, com as letras grandes e coloridas ocupando quase toda a capa, e um miolo arejado. Uniforme não ganha jogo, mas pode conquistar torcedores.

Laub Futebol Clube x Clube de Regatas Backes

Ao leitor desavisado, que não conhece as artimanhas de Laub, é bem provável que ache as primeiras páginas de O gato diz adeus bem mornas, uma espécie de Amós Oz ou Julian Barnes diluído. E esse mesmo leitor pode pensar: duvido que esse livro se sustente, com esses quatro personagens (Sérgio, Márcia, Roberto e Andréia), e sem cenários definidos, datas ou referências. Mas Laub domina muito bem as quatro vozes narrativas, que se contradizem, se sobrepõem, se alternam em pequenos trechos. Bem cadenciado, O gato diz adeus cresce muito do meio ao fim (a mesma coisa acontece nos livros anteriores de Laub, e com uma potência assustadora no seu último livro, O diário da queda). Laub também sabe esculpir suas elipses: o livro é sobre um aluno que rouba a mulher do seu professor? Talvez. Ou sobre um professor que empurra sua esposa para seu aluno predileto? Talvez. Ou sobre uma mulher que acredita no sofrimento como redenção? Talvez. Ou sobre como para algumas pessoas o prazer só é obtido pela dor e humilhação? Talvez. Ou ainda sobre como uma ínfima atitude pode destruir ou construir uma vida? (tema recorrente na obra de Laub). Talvez. Ou como a depressão pode passar despercebida? Talvez. Sim, o livro é carregado de perguntas e desvela um verdadeiro triângulo amoroso, onde todos os vértices vivem na dicotomia amor/ódio. E tudo sem uma espécie de “falsificação” e de “adornamento” da questão, como diria nosso amigo Sebald. Outro grande mérito do livro é o que eu chamo de efeito armlock, algo que aprendi quando suava meu quimono nas aulas de jiu-jítsu. O armlock é um dos golpes mais precisos do jiu-jítsu, e um dos primeiros ensinados. É a junção de cinco ou seis movimentos mínimos, praticamente sem esforços, que culminam num golpe gracioso e potente. E Laub é perito nisso, sabe como poucos usar movimentos mínimos para enredar o leitor, e constrói várias situações armlockianas dentro da narrativa.

Bom, vou ilustrar isso, para agradar o Santo Sebald.

http://www.youtube.com/watch?v=ZhWmROcEmWw

Três traidores e uns outros é um acerto de contas, no sentido cheeveriano mesmo. Um tradutor-escritor um tanto misógino, outro tanto misósofo, lavra suas memórias: glórias sexuais e tragédias amorosas. É alguém que rodou o mundo, mas a catraca da experiência empírica não girou. “O aqui dentro não muda nem um pouco só porque o lá fora muda”.

Estão lá a filósofa tradutora, a empregadinha do amigo poeta, a autora consagrada, a noiva de Toz, a primeira esposa, a noiva de Porto Alegre, e entre bocetas úmidas e amores secos paira Nimrod, o tradutor consagrado, renomado internacionalmente, que termina seus dias numa dessas cidadezinhas do interior, amargurado e sonhando com ninfetinhas. “Tudo passa, na realidade, por isso, quando a gente conta, tudo volta e vira agora, tudo acaba sempre sendo agora…”

O narrador é arrogante, talvez Backes também seja, mas isso é bom, empresta ao personagem a verossimilhança necessária. E embora o narrador alegue que o ambiente não o influencia, o grande mérito do livro está nessa brincadeira, a multiplicidade do narrador perante seu ambiente. Outra grande sacada é a metáfora da tradução, que permeia todo o livro: “Também lembrei a ela que nós, os tradutores, registramos de maneira eterna a precariedade de nossas leituras. Que somos leitores com um gigantesco poder de interferência, por assim dizer; e que somos traidores, mesmo quando não queremos e, mais que isso, que às vezes temos de trair para ser fiéis de verdade”.

Os cinco capítulos de Backes lembram outro golpe de jiu-jítsu, o triângulo de mão. Uma manobra que precisa de rapidez e força, e combina muito bem com este verso do livro:

dói tanto ver
quem menos ama
tem mais poder

Triângulo de mão (Santo Sebald, rogai por nós!)

http://www.youtube.com/watch?v=77aFTNk_Lfw

O jogo: a luta 

1 x 1: em menos de cinco minutos de jogo 

Sim, essas equipes tinham plenas condições de se enfrentarem na final, mas quis o destino que uma delas dissesse adeus antes. E para mostrar força, ambas equipes vieram com tudo nos primeiros cinco minutos. Um golaço para cada. Os personagens são dois tradutores que vivem a angústia de trair a palavra, a cada momento. Personagens bem construídos rendem gols rápidos. O gol do Laub é aquele classudo, dribla um, dribla dois, passa pelo goleiro e dá só um toquezinho. O do Backes é aquele gol brucutu mesmo, bate e rebate na área, bola alta, guerra aérea e literatura, cabeçada e pronto, rede estufada. 

2 x 2: a marca da igualdade

É rapaziada, o Laub tem o efeito armlock na manga, tem iniciativa, foi lá e marcou mais um golaço, com cinco ou seis toques suaves chegou na cara do gol e tim, como Messi, com classe, gooolllll!!!! O time do Laub joga bonito, toque de bola, é o verdadeiro espírito do futebol brasileiro. Já o Backes tem um time compacto, de contra-ataque, dunga-style. Opa, derrubou na área é pênalti, goleiro de um lado e bola do outro. Goooolll!!! O futebol de resultados mostra serviço, Backes encosta, tirou o famoso triângulo de mão da cartola.

3×3: pancadaria no campo 

A ironia do Laub é sucinta, a do Backes, aberta, mas ambas são perfeitas. Um gol de bola parada para cada, muita discussão entre os jogadores, o juiz expulsa um de cada time, os ânimos se alteram, a torcida invade o campo, pancadaria, a partida reinicia 30 minutos depois.

4×3: nem sempre…

O torcedor brasileiro sabe muito bem disso: nem sempre o time que joga mais bonito vence. Ou seja, realmente o gato diz adeus. Backes marca um gol no finalzinho do segundo tempo. Aquele gol que ninguém espera, o gol da superação. Backes teve um pouco mais de fôlego, seus personagens ficaram por mais tempo na minha memória, ganharam sobrevida e força com o passar dos dias. Durabilidade não é primazia só da Duracell não, rende pontos na literatura, pontos e goooollllll!!!!

PLACAR
O gato diz adeus 3 x 4 Três traidores e uns outros

VENCEDOR
Três traidores e uns outros, de Marcelo Backes

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2 respostas para JOGO 42 – O gato diz adeus x Três traidores e uns outros

  1. Em primeiro lugar, parabéns aos dois autores que escreveram livros maravilhosos, excepcionais. Em segundo lugar, parabéns ao sr. Juiz, pelas resenhas, pelos comentários e pela espetacular narração do jogo. Perfeito. Em terceiro lugar, e isto é só uma opinião porque, mesmo concordando com o ilustre árbitro que este seria o jogo para a grande final, vou discordar do magno referee quanto à sua decisão. Não que ache o livro do vencedor pior do que o do perdedor. Nada disto. Mas o Laub… vou te contar, é demaaais, conforme o novo escritor da praça, o cantor e narrador PED (Pedro Ernesto Dernardin).
    Por último, isto é, em quarto lugar, este campeonato está espetacular.

  2. Olá Paulo, tudo bem? Obrigado pela participação! Laub é realmente uma grande escritor, gosto muito dos três livros que antecedem o supra resenhado, e “Diário da queda” é um livro extraordinário. Inclusive já fiz uma mediação de uma mesa dedicada ao Laub em Itajaí. Mas quis o destino (trilha sonora de drama, com violinos) e o recorte temporal do campeonato que o livro menos potente (para mim, claro) do Laub enfrentasse este petardo do Backes. E eu mesmo me surpreendi com o resultado, podes apostar! Abração do Schroeder.

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