JOGO 44
Suíte dama da noite,
de Manoela Sawitzki (Record / 2009)
x
Anjo das ondas,
de João Gilberto Noll (Scipione / 2009)
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JUIZ
Rodolfo Viana – Escreve sobre livros para a revista Vida Simples e é editor do portal Papo de Homem. Gosta tanto de literatura que pretende nunca escrever um livro. Não manja de futebol, mas torce para o alviceleste Marília Atlético Clube.
Os autores
Eu nunca tinha lido algo de João Gilberto Noll, autor que vim a saber ter ganhado dois prêmios Jabuti. Também não conhecia Manoela Sawitzki, nome de destaque no teatro que já arrebatou o Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia. Assim, apesar de Noll ter uma tradição em romances e Sawitzki estar apenas no seu segundo título do gênero, dediquei a ambos a mesma leitura curiosa, o mesmo olhar de quem encontra estranheza e é fascinado por ela. Ambos aqui têm o mesmo peso e nenhuma história.
O jogo
Suíte dama da noite
Júlia é uma mulher à espera do intraduzível. Com o vazio da perda, ela tem aquela tristeza que, muito provavelmente, alguma palavra alemã possa definir com exatidão. Os alemães têm expressões para quase tudo o que é indefinível. Se escrito em alemão, Suíte dama da noite não faria sentido de existir.
O romance de Manoela Sawitzki começa com uma morte. Leonardo, outrora seu amor e agora um quase concunhado, não mais existe do lado de cá. Com o falecimento, Júlia perde seu chão – e quase sua sanidade. Dividida em momentos de depressão e instantes de exaltação, Júlia nos dá a impressão de quem, na próxima página, perderá de vez o tino.
Para chegar ao âmago da dor, a autora mescla os dramas íntimos da personagem – inclusive durante sua vida, e não apenas depois da morte de Leonardo – com o mundo exterior. Um exemplo perfeito: a versão eufórica de Júlia compra flores que sempre morrem antes do tempo.
Mas algumas digressões não se justificam – não é uma opinião baseada na máxima “Escrever é a arte de cortar palavras”, mas sim no fluxo de leitura. “Não saberia dizer-lhe adeus de novo”, por exemplo, começa com a ida de Júlia à Capelinha do Perpétuo Coração. Depois do primeiro parágrafo, 62 linhas tentam explicar por que sua alma é “maldita” – o que não faz diferença no desenrolar da trama. E só então voltamos ao tempo atual, às homenagens ao falecido.
Outra falha é a contradição:
Parabéns, Júlia Capovilla! Hoje você não enlouqueceu!
Ela mesma tratava de prestar contas. Registrava o próprio percurso desde o instante em que acordava, até que pudesse dormir outra vez. E era lá, quase desmaiada sobre a cama, o cabelo desfeito, a boca pálida, a pele cheirando a rosas de banho recente (limpa, tão limpa…), que procurava por qualquer indício de que pudesse ter enlouquecido naquele dia.
Desculpe-me, Júlia Capovilla, mas se você passa o dia, do acordar até o dormir, contabilizando sua sanidade – ou a falta dela –, sim, você enlouqueceu.
Anjo das ondas
Aos 15 anos, Gustavo está na fronteira da juventude, naquele exato ponto em que um homem ainda não é um adulto, tampouco um garoto. Em princípio, poderíamos lançar mão do discurso “ele está na fase de descobertas”. Seria um discurso errôneo: descoberta implica uma prévia ignorância. Gustavo, por sua vez, sabe o que é sexo – apenas nunca o experimentou. É o fim da ingenuidade, substantivo que tem contornos de redenção do qual Gustavo não mais goza.
A urgência de se tornar um homem feito – ele, criado sem a figura paterna por perto e estranho de sua mãe – e o desejo de remoer resquícios da infância convivem nem sempre em harmonia nas falas e nos pensamentos de Gustavo. São dois pontos opostos, mas que estão posicionados nas extremidades da mesma linha torta. Isso demonstra a contradição da qual todos nós já experimentamos nesta vida: os ritos de passagem são universais. Assim, o tema de Anjo das ondas se torna atemporal, se faz uma parte do drama humano. É também inexato e quem quiser explicá-lo, falhará.
Noll foi perspicaz em não querer delinear tal rito de passagem, mas falha ao apresentar conflitos complexos demais para um jovem de 15 anos. Por exemplo:
Seu corpo ainda exalava o cheiro de Cristina. Pensou que seria bom que os dois pudessem morar juntos, às vezes dividir a mesma cama, degustar quem sabe o macarrão que ele ainda não aprendera a cozinhar.
Aos domingos faria o churrasco… Ao espalhar o sal grosso sobre a costela, veio-lhe a ideia de um filho. Provar do sangue do meu sangue. Com aquele pensamento sentiu-se forte e previdente, alguém a calcular seu plano de imortalidade.
Correu até o espelho, viu uma face meio diluída, indeterminada, com bastante lugar para que pudesse desenhar na cara oca o seu futuro.
Pensar em ter filho aos 15 anos é pouco comum, e mais raro ainda é pensar em ter um rebento como forma de “imortalidade”, de perpetuação de si mesmo.
Mas se falha ao exceder na densidade das ponderações juvenis, Noll acerta a mão ao não tentar explicar o rito de passagem, como dito acima, mas sim a apresentá-lo tal como é: confuso. Até mesmo na escrita: ora o narrador se mostra na primeira pessoa, ora na terceira. A intenção é separar o sujeito que foi do sujeito que é, ou seja, o menino do homem. Assim, peca na fluidez, mas por um bom motivo. É uma desobediência narrativa que seduz.
PLACAR
Suíte dama da noite 1 x 3 Anjo das ondas
VENCEDOR
Anjo das ondas, de João Gilberto Noll
É.