JOGO 46 – Unhas x Sinuca embaixo d’água

JOGO 46

Unhas,
de Paulo Wainberg (Leya / 2010)
x
Sinuca embaixo d’água,
de Carol Bensimon (Companhia das Letras / 2009)

—————
—————

JUIZ
Fabio S. Cardoso – É jornalista e professor universitário. Desde 2005, é colaborador do jornal Rascunho. Já escreveu, entre outros, para o Digestivo Cultural e para o Jornal do Brasil, e foi três vezes juiz da Copa de Literatura Brasileira.

O jogo

A presente etapa deste Campeonato Gaúcho de Literatura tem um jogo de duas escolas, no mínimo, distintas. É o duelo entre Sinuca embaixo d’água, de Carol Bensimon, e Unhas, de Paulo Wainberg. De início, cabe observar que essa diferença faz com que o leitor perceba que os dois autores contam com projetos opostos no tocante ao fazer literário. Em outras palavras, leitor-espectador, são livros opostos, o que mostra a diversidade/universalidade de um torneio aparentemente regional – entendam, sou um juiz de outro estado da federação; logo, na minha percepção, a literatura de uma determinada região era passível de receber/sofrer a mesma “angústia da influência”, para citar a expressão favorita de um crítico conhecido. Engano meu. Mea culpa. Pois, definitivamente, não é o caso dos livros que duelam nesse jogo.

Vamos ao texto, leitor, para que a análise não fique por demais subjetiva. Sinuca embaixo d’água se estabelece com uma prosa que atende, para o bem e para o mal, às expectativas do leitor contemporâneo. Assim, o texto articula um sem-número de referências em torno da história de jovens que se encontram no momento de passagem da adolescência/juventude para a vida adulta. As vastas emoções e os sentimentos imperfeitos de uma geração, sua permanente inconstância e seu ardor emocional são colocados à prova diante de um acontecimento definitivo: a morte de Antônia. Em verdade, ela se torna, ainda que postumamente, uma referência, uma vez que é em torno dessa protagonista que os personagens percorrerão a narrativa, de maneira que sua lembrança se materializa não somente nas recordações, mas nas referências musicais, estéticas e sentimentais daqueles jovens.

A certa altura, tem-se a impressão que o livro de Carol Bensimon é demasiadamente embevecido pela lógica da pós-modernidade. Explica-se: são citações aos montes, a ponto de o livro parecer, em determinados períodos, artificialmente cifrado, como se composto conforme um desses manuais oriundos das teses de Fredric Jameson ou de Jean-François Lyotard. Atenção, leitor, a autora não menciona esses pensadores no romance, mas é como se suas ideias estivessem impregnadas em cada página, tamanha é a necessidade de se estabelecer uma cadeia de referências – não se sabe, aqui, se é para dialogar com os seus leitores ou se para impressionar os pares escritores.

Os indícios dessa característica são exemplares como o trecho que segue:

Sou um Axl Rose gordo sozinho num quarto de hotel, um Kurt Cobain na estufa com a arma que toca o céu da boca e, se os caras compensam um fracasso final com um passado brilhante, eu não. Qualquer memória me condena. Puxe o primeiro pedaço de mim. Tenho seis anos, a escolinha é na rua de trás, com gnomos e bichos de gesso no pátio. Risquei o cavalo com giz de cera. Eu queria que ele fosse roxo. Ele era roxo no desenho animado. Recebo atenção especial. A professora pergunta: Como assim nada, querido? (p.14)

A despeito desse artificialismo, espécie de gol contra, o livro consegue superar suas dificuldades, graças a uma costura bem encadeada dos fragmentos. De fato, as partes se transformam em um todo, sendo capaz de reverter o placar, como veremos a seguir. Como síntese, e para começar a falar do adversário, os vícios de Sinuca embaixo d’água não atrapalham um de seus principais objetivos: apresentar narrativas múltiplas tomando como referência um único evento. Para além da capacidade estrutural (arre, academicismo), o texto também se impõe graças à sua prosa bem-elaborada:

Há uma lua quase irreal hoje, que os vidros escuros do prédio 60 refletem. Câmeras, é isso. Câmeras preocupadas com vândalos ou ladrões. Câmeras que nos mostrem o que ninguém estava para ver. Uma entrada na garagem. Não me serve de nada. Então procuro mais e pronto. Apontada para a rua, a câmera se mexe como um pequenino robô do mal. Eu, quase feliz, quase sorrio. (p.49)

Com o fragmento acima, não quero dizer, como eventualmente pode imaginar o leitor, que o texto de Paulo Wainberg é mal escrito. Não é. Da mesma forma como não quero dizer que sua prosa seja desprovida de imaginação literária. Nada disso. Ocorre que, em comparação com o romance de Carol Bensimon, a empresa de Wainberg, Unhas, não resiste. Paulo Wainberg aposta em fazer o romance acontecer a partir de uma cena particular, a partir do detalhe: um assassino diante de sua vítima. É como se o livro, em certa medida, começasse já na metade. E, aos poucos, os leitores somos apresentados à história, que envolve mais do que meros acontecimentos de natureza policial-investigativa. Em vez do thriller de ação, estamos defronte ao thriller psicológico, desses cuja intenção é arrebatar os sentidos e surpreender o espectador. Ocorre que, no caso de Unhas, essa tentativa fica no quase, menos devido à incapacidade de Wainberg em conduzir à história, mais em função da necessidade do autor desfilar suas características como estilista e de escritor com assinatura própria.

De fato, o livro tem o mérito de, com um título minimalista e pouco óbvio, acender a imaginação do leitor – ao menos foi isso que aconteceu comigo. Mas essa impressão não permaneceu, infelizmente. Em verdade, a tentativa de compor um romance lançando mão de tantos recursos – ênfase no caráter psicológico da trama, narrativa policial, voz narrativa ora em primeira, ora em terceira pessoa – não se sustenta, uma vez que essas características se instauram em primeiro plano, tornando-se mais importante do que o romance em si. É bem verdade que o conteúdo se adéqua à forma, mas eis aí um verdadeiro entrave à apreciação do livro. Trazendo à baila a inevitável metáfora ludopédica, é como se o escrete, ciente de sua capacidade de vencer o jogo, estivesse mais preocupado em conquistar a atenção do público e do adversário em relação às suas qualidades e habilidades que acaba por deixar de lado a missão de entrar em campo, atuar bem e vencer o jogo. O resultado é que, mesmo tendo possibilidades de vencer o jogo (e por que não o campeonato, tendo em vista que bateu medalhões em etapas anteriores?), Unhas não faz um jogo à altura do seu rival.

Um exemplo singular dessa possibilidade inalcançada, do quase, está no trecho que segue: 

Abaixou-se e desamarrou a corda, deixando a garota livre. Ela se ergueu e viu o rosto dele, que, naquele momento, parecia bondoso. Ela não podia acreditar que aquele homenzinho fizera aquelas coisas todas. Ensaiou uns passos, mas ele a segurou pelos ombros, dizendo: – Vou deixar você mais confortável, meu bem.

Em seguida, abriu o botão e o zíper das calças jeans e baixou-as, revelando pouco a pouco a região pubiana e sentindo a textura e a maciez das coxas brancas, até deixá-la nua, apenas com as calcinhas. Deu dois passos para trás, jogando as calças para um canto e apreciou o corpo da garota de dezessete anos.(p.156)

Toma-se pela descrição que o autor possui capacidade para emprestar ao narrador o gosto pela minúcia e pelo detalhe. Ocorre que, nesse caso, caberia perguntar: a que se presta esse recurso, a não ser para enfeitiçar o leitor ou mesmo turvar o seu olhar diante da fragilidade dramática/romanesca dessa cena tão banal? Acrescente a isso os capítulos curtos do livro e, voilà, temos um perfeito modelo de narrativa fragmentada, ainda que o objetivo tivesse sido o de produzir certo efeito de sentido no leitor.

Aqui, talvez seja o momento mais adequado de retomar a premissa inicial desse artigo, a propósito da comparação dos projetos literários dos dois autores. Ora, por que essa comparação de projetos é importante? Trata-se de perceber de que forma ambos os livros contemplam as expectativas prometidas ao longo do texto (e isso se nota pela estrutura adotada nos livros, assim como pelo estilo da prosa e pelas vozes dos respectivos narradores). E é exatamente aqui que a vitória de Sinuca embaixo d’água, de Carol Bensimon, fica mais evidente, posto que há um sentido, um norte, mesmo que em alguns momentos isso seja contraproducente para com o texto. Em Unhas, as partículas elementares, a despeito do talento do autor, jamais se articulam em conjunto, pelo menos não da mesma forma como o adversário. E o placar é significativo dessa comparação desequilibrada: 3 a 1 para Sinuca embaixo d’água, sendo que o único gol a favor de Unhas foi contra.

PLACAR
Unhas 1 x 3 Sinuca embaixo d’água

VENCEDOR
Sinuca embaixo d’água, de Carol Bensimon

Publicidade
Esse post foi publicado em Jogo e marcado , , , . Guardar link permanente.

2 respostas para JOGO 46 – Unhas x Sinuca embaixo d’água

  1. A injustiça foi Unhas ter caido nesta chave, onde as chances de vitória são mínimas. Cumprimento a Carol pelo belo romance, ela que é uma escritora de primeira linha. Também cumprimento o ilustro Juiz, pela acuidade e pela clareza na exposição de seus critérios. E agradeço as referências carinhosas feitas ao livro perdedor, no caso o meu. Na quarta feira tenho uma parada ainda mais dificil, mas estou feliz de ter participado deste campeonato e, por que não?, orgulhoso de ter chegado até aqui. Fico acompanhando até o final, sem abrir mão de admirar os idealizadores e organizadores deste evento.

  2. Carmencita disse:

    Eu nem li, mas é óbvio que um livro que homenageia as unhas só pode ser muito bom.

    Um grande beijinho!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s