JOGO 49
História de não acontecer,
de Reges Schwaab (Modelo de Nuvem / 2010)
x
Três traidores e uns outros,
de Marcelo Backes (Record / 2010)
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JUIZ
Pedro Mandagará – Está terminando seu doutorado em Letras (Teoria da Literatura) na PUCRS, onde fez mestrado na mesma área. Também é bacharel em Filosofia pela PUCRS. Sua pesquisa trata do engajamento na literatura brasileira e latino-americana dos anos 1970.
Os uniformes
A essa altura, todas as capas dos participantes do Gauchão de Literatura já foram extensivamente comentadas. Porém, não posso deixar de elogiar o projeto gráfico da independente Modelo de Nuvem, lindíssimo. Nem de comentar a semelhança da capa de Três traidores e uns outros com o Olho de Sauron, do filme do Senhor dos Anéis (outras associações a partir daí ficam a cargo dos leitores).
As equipes e o jogo
(Explicação: como ambas as equipes já participaram de diversos jogos, não farei grandes referências ao enredo, que, em ambos os casos, já foi bem resumido por juízes anteriores.)
Comecemos com Três traidores e uns outros, de Marcelo Backes. Segundo Marcelo Frizon, árbitro de embate anterior do livro, a narrativa “é um belo exemplo daquilo que Adorno explicou ao afirmar que forma literária é experiência social decantada”. Faltou dizer que Backes, doutor em Germanística por Freiburg, parece ter lido Adorno e aplicado no texto literário, junto com outros teóricos (de Linda Hutcheon a Homi Bhabha). Tratando de tradução e encontros interculturais, narrado por um sujeito fragmentado que se associa à figura do próprio autor, também tradutor do alemão e bolsista além-mares, Três traidores e uns outros parece um manual de romance pós-moderno, do tipo que o público leigo tem que pedir ajuda aos universitários para ler a contento.
O fato de um autor ser também leitor de teoria não é necessariamente ruim. De Umberto Eco a John Barth, há bons autores que são também teóricos, assim como há os que teorizam dentro da literatura (Borges) e os teóricos que escrevem literariamente (Barthes). Mas esta é uma equação complicada, que Backes não resolve bem. Para um autor que demonstra certo domínio técnico e que não parece nada ingênuo, fica difícil entender passagens como esta, que parece ter saído de Confissões de adolescente:
“Na verdade eu costumava agir assim, transferindo aos outros o dever da escolha e lavando minhas mãos no conforto de mais uma decisão que não precisava ser tomada.” (p. 53)
Também difícil de aguentar é o pastiche de Guimarães Rosa na primeira seção (“O enforcado”). Aliás, Guimarães Rosa na prosa e Leminski na poesia tornaram-se influências que só posso dizer nefastas na produção atual – vide, para o primeiro, alguns contos da recente coletânea Geração Zero-Zero e, para o segundo, os Poemas no ônibus aqui de Porto Alegre. Um exemplo do tom roseano está na passagem seguinte, na qual o narrador desliza entre registros populares e eruditos e onde um destinatário do texto se faz mais presente (à maneira Grande Sertão):
“Sabiam se aproveitar, os usurpadores, minha mulher à testa. Como se não tivesse sido minha luta de marido que sustentou sua ociosidade de mulher. Não foi por menos que cheguei a pensar em matá-la, um dia. Ela usou um laranja pra adquirir minha parte depois da separação, e durante muito tempo fizera do lugar um hotel-fazenda, com balneário e tudo, Uruguai pertinho, antes de falir. Não valia mesmo um sabugo, a cadela, e eu aliás deveria evitar uma palavra como testa nesse contexto. A minha doeu, como doeu! Mas as mulheres são assim, e eu só confirmei o que se tornou uma espécie de postulado de humildade pra mim. Sim! Ao fim e ao cabo, eu sempre fui, neste mundo, aquele que menos me decepcionou. E não me venham com nhe-nhe-nhens e presidentes. Ah é, sou melancólico? Sou lido e vivido, e sei muito bem que só um monstro pode se permitir o luxo de ver as coisas como de fato são…” (pp. 29-30)
Peço desculpas pela citação demasiado longa, que prometo ser a última. Na passagem, como num microcosmo do romance, se enfileiram diversos problemas do texto de Backes: o desastrado jogo de palavras com “testa”, a repetição de frases-feitas (que, sei, são do narrador, mas cansam mesmo assim), a misoginia constante (que, mesmo sendo do narrador, é exagerada e cansativa). Nas seções seguintes do texto (de “Outubro dourado” em diante) esses problemas parecem estar menos concentrados e a leitura flui melhor, mas até na penúltima página aparecem imagens duvidosas como “uma linguiça que enchi com a carne vermelha do outrora” (p. 168).
Uma outra característica do livro de Backes, partilhada por seu oponente na partida e por outros participantes do Gauchão, é uma filiação pouco convincente ao gênero romance. No caso de Backes, as quatro seções de seu texto (fora o Epílogo) me parecem mais contos isolados, que acontece de serem narrados pelo mesmo personagem. No caso de História de não acontecer, de Reges Schwaab, o livro inteiro me parece um conto só – ou então um exemplo daquele gênero não muito lembrado, a novela. (O mesmo acontece com as pouco menos de 80 páginas de O gato diz adeus, de Michel Laub, eliminado por Backes no jogo 42 deste Gauchão.)
Passando ao livro de Schwaab, fiquei muito surpreso. De início, me irritou a nomeação meio funcional das personagens (N.A., O Homem, O Velho, A Velha, A Tia). Mas no universo poético do livro isso faz sentido. A escolha do nome do protagonista achei especialmente adequada: N.A., que pode ser Not Available, como lembrou Antônio Xerxenesky em resenha anterior – not available, isto é, quem não está lá – assim como pode ser Nenhum(a) das Anteriores, isto é, o que sobra, o resto da casa.
Não só o nome das personagens é funcional, no entanto, e aqui achei que Schwaab poderia ter localizado um pouco mais o espaço romanesco. Praticamente a única dica que temos quanto a onde a história se passa é o uso de alemão pelo personagem O Velho (o avô), o que me fez pensar em alguma das cidades da colônia alemã do Rio Grande do Sul (ou de Santa Catarina?). Essa generalidade excessiva é um problema que Schwaab compartilha com vários dos novos escritores brasileiros, que parecem tentar uma espécie de universalidade ad hoc ao fazer uma história que se passa em qualquer lugar, em qualquer tempo. Mas acho que Schwaab tem talento suficiente para não precisar disso: umas referências históricas e espaciais aqui e ali, ou mesmo um nome completo para algum ou outro personagem, ajudariam na concretude do texto sem que este perca seu caráter onírico.
Além dessa questão da generalidade, falta limar um pouco algumas frases do texto. O poético, algumas vezes, pode escorregar no clichê. Além disso, seria o caso de cortar, numa segunda edição, a totalidade da página 77 (intitulada “Ficção”). O que está ali explica em excesso o restante, de maneira desnecessária, e faz perder um pouco da graça. O livro funciona melhor sem explicação, num universo circular e onírico reminiscente da Clarice Lispector de Água viva.
Comparando os dois livros de maneira rápida, dou a vitória a Schwaab. Nenhum dos dois livros é isento de problemas. Schwaab, porém, desponta nesse seu primeiro livro (romance? novela? conto?) como uma possível figura importante no nosso cenário intelectual. Seu livro, apesar dos problemas, me faz ter vontade de ler suas próximas e, tenho certeza, melhores, obras.
PLACAR
História de não acontecer 1 x 0 Três traidores e uns outros
VENCEDOR
História de não acontecer, de Reges Schwaab
Será que esta é a resenha que vai nos fazer parar de brigar? Séria, competente, mas não é chata, comprida, artigão pro lattes. Gostei. E nem tem piada escancarada.
Fico feliz em verificar que não pensamos tão diferente assim — impressão que me ficou depois dos comentários que trocamos sobre o jogo 48. Também gostei desta resenha, exatamente pelos méritos que apontas, além de ser bem objetiva quanto aos aspectos que fundamentaram a decisão do árbitro.
Ainda sobre resenhas: sou crítico, já perdi a conta de quantas já escrevi, mas confesso aqui que não gosto muito de ler esse tipo de texto. Muitas resenhas são aborrecidas; noutras, o ego do resenhista se sobrepõe ao que ele tem a dizer (por isso raramente uso a primeira pessoa, para não cair na mesma tentação). Gosto de textos polêmicos e/ou bem-humorados, desde que sejam consistentes e respeitosos. Na qualidade de também autor, sei o quanto se rala para conseguir um texto ao menos razoável, por isso deploro o deboche gratuito. E estou falando aqui em tese, não em relação a nenhuma resenha em particular das muitas que estão fazendo este campeonato. Aqui já li resenhas ótimas, outras nem tanto e outras, ainda, deploráveis. Nada além da média de qualquer reunião de textos.
Ah, eu gosto de uma piada! Não acho gratuito quando é sobre a obra… mau gosto é usar a vida pessoal ou a aparência do autor pra fazer piada. Tirar uma onda com o estilo e uma ou outra palavra mal escolhida está dentro do escopo, ué. A gente acaba ficando apegado aos nossos escritos e acaba levando como ataque pessoal uma crítica mais ríspida. Mas enquanto o assunto for o livro, conteúdo, formato, eu dou risada sem dores éticas.
O romance é um gênero tão pouco sujeito a fórmulas e regras, que é um risco falar em “filiação pouco convincente ao gênero romance”. (Mal) costurar contos e chamar a colcha de “romance” pode ser, sim, uma extrapolação, embora não pareça o caso aqui. Agora, exigir “concretude” ou maior “localização” do espaço romanesco é pedir que o romance seja um só, o romance realista. Se o romance não morreu como gênero de criação, foi justamente porque escancarou os limites do realismo do séc. XIX, que já era um estreitamento em relação às origens mais abertas e livres do romance, com Cervantes. Ainda bem que há espaço para tudo, inclusive na literatura brasileira, que premia o realismo de um Rubem Figueiredo e a fragmentação de um Nuno Ramos. O fato de que os dois semifinalistas aqui correm por linhas menos convencionais é antes mérito do que defeito.
Pessoal:
queria agradecer os comentários de todos. Queria ter tido tempo, este ano, para acompanhar melhor e participar das discussões dos outros jogos do gauchão. Infelizmente, pelos meus prazos apertados no doutorado na PUC, não pude aparecer muito. Mas no que li tinha muitas coisas interessantes. Mais interessante que qualquer uma isolada, creio, é o acúmulo de leituras que os participantes vão tendo.
Aproveito para esclarecer alguns pontos mencionados pelo Isaías, e que acho que não deixei tão claros no texto. Meu comentário sobre a filiação ao gênero romanesco não teve um sentido de cobrança, mas de constatação mesmo. O romance como gênero histórico chegou a um ponto onde suas fronteiras são muito fluidas – mas esta fluidez tem várias especificidades. Creio, por exemplo, que um livro de 80 páginas, como “História de não acontecer” ou “O gato diz adeus” não seria considerado uma “novel” nos Estados Unidos, mesmo sendo chamados de romance aqui. Por que essa variação geográfica? Minha hipótese é que tem algo a ver com a vendabilidade maior, no Brasil, do gênero romance – mas não tenho como verificar isso.
Quanto a minha sugestão de concretude, de maneira nenhuma quis encaixar o Schwaab em padrões do realismo europeu, que não teriam nada a ver com seu texto. Talvez o problema seja o termo “concretude”, excessivamente ligado a uma ideia de representação do real. Um termo mais exato poderia ser (preparem-se para o horror) “determinidade”. Ou seja: fugir do geral e ir na direção do específico, não sempre, mas de vez em quando, e como recurso de estilo.
Que isso não tem nada a ver com o realismo se pode ver com exemplos: na obra de Joyce pululam referências da política e da vida irlandesa, na de Woolf idem quanto à Inglaterra, e mesmo textos tão abstratos quanto o “Catatau” de Paulo Leminski e as “Galáxias” de Haroldo de Campos são cheios de referências histórico-geográficas, tanto passadas quanto (então) presentes. Nada disso “desexperimentaliza” as obras ou as aproxima do realismo. Apenas as enriquece: um Catatau sem Descartes e sem Recife seria ainda um jogo verbal maravilhoso, mas perderia muito da graça.
Bem, já me alonguei demais. Um abraço a todos!