JOGO 51 – História de não acontecer x Anjo das ondas

JOGO 51

FINAL DO GAUCHÃO DE LITERATURA 2011

História de não acontecer,
de Reges Schwaab (Modelo de Nuvem / 2010)
x
Anjo das ondas,
de João Gilberto Noll (Scipione / 2009)

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JUIZ
Paulo Seben – Poeta, romancista, contista, letrista de rock e MPG, articulista, crítico literário, professor de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFRGS, universidade na qual se graduou em Letras, tendo obtido depois os títulos de Mestre e Doutor em Letras pela PUCRS. No futebol, foi goleiro, lateral-direito, lateral-esquerdo, beque central e quarto-zagueiro (esta, a posição em que se notabilizou literariamente, devido a seu poema “Quarto-Zagueiro da Poesia”, levou a editora Ameopoema a dar-lhe a camisa 4 de sua seleção de poetas); fora dos gramados desde a adolescência, publicou, em dezembro de 2010, o Dicionário Gremista pela editora caxiense Belas Letras.

Fatores extracampo

Pode até ser verdade que o árbitro ideal de uma partida de futebol seja discreto como uma samambaia em sacada de apartamento de velhinha que mora sozinha e eficiente como um dia foram os relógios suíços de mola, mas é absolutamente certo que toda final de campeonato, paradoxalmente, precisa de um juiz polêmico. Se o Flamengo estiver em campo, o juiz precisa ser, além de contestável, ladrão. Ainda bem que o Flamengo não participa do Gauchão de Literatura, fato que me livra da condenação prévia, se bem que não dê garantia nenhuma aos literatletas torceitores de que ficarão felizes com meu desempenho e minha decisão final. Talvez a poderosa Lu Thomé, inclusive, se arrependa amargamente da escala que fez. Agora é tarde.

Há juízes que dizem não acompanhar a mídia esportiva; seria uma forma de não se deixar influenciar por fatores extracampo. Armando Marques chamava os jogadores pelo sobrenome que assinavam na súmula (“Sr. Nascimento, o camisa 10 do Santos”). Pois a primeira coisa que fiz depois de ler os dois romances desta eletrizante final foi debulhar as 49 resenhas anteriores. Minto. A segunda. A primeira foi escrever à Lu Thomé para ter certeza de que eu estava decidindo o título do Gauchão, e não a primeira partida do qualifying.

De um lado, temos um escritor multipremiado, que eternamente sofrerá com a minha inveja por ter, certa vez, recebido um computador como ADIANTAMENTO de direitos autorais. Ah, como é dolorosa a vida de juiz free-lancer, sem contrato assinado. De outro, um completo desconhecido, saudado pelos paratextos da edição de sua obra como um grande talento. Estaríamos diante da iminência de um Mazembaço ou de um Jabutismo?

Os uniformes dos dois times já foram comentados por outros resenhistas, e pouco tenho a acrescentar, exceto que a capa de História de não acontecer poderia ser um pouco menos pretensiosa, e a de Anjo das ondas, menos convencionalmente anticonvencional (e, ainda por cima, pouco operacional: vai lá marcar página do terço final da obra com aquela única orelha desproporcional pra ver o que é esquisitice). Aqui, camiseta não vai ganhar jogo.

O jogo

As duas obras são um triunfo de Filosofia da composição, o célebre ensaio de Edgar Allan Poe sobre… Poesia, no qual, ao descrever o processo de criação do poema O corvo, ele estabelece as regras de ouro do conto ocidental dos séculos XIX e XX. Infelizmente, eu supunha estar arbitrando um confronto de romances. Tanto Anjo das águas quanto História de não acontecer são livros que se lê de uma sentada, e infelizmente não se trata daquelas sentadas de virar noite por não conseguir interromper a leitura nem pra ir ao banheiro, e sim daquelas de ocupar uma viagem de ônibus do Campus Vale ao IAPI ou o processo de destinação final do feijão-com-arroz do RU (aliás, sempre delicioso, e o leitor que decida o referente, aqui).

Em tempos de tuitância e raicaísmo, deve parecer estranho dizer que duas narrativas são demasiado curtas, e a injustiça do juiz se torna ainda mais gritante quando a fluência da narrativa, a concisão das frases e a limpeza do estilo são virtudes das duas equipes em campo, mas o acerto dos técnicos na escolha do esquema mais adequado às características dos atletas escalados e às preferências das torcidas organizadas e desorganizadas (sem contar, pelo que vi de meus colegas de Crítica, da mídia lítero-esportiva) é acerto que não atende ao gosto conservador dos leitores de mais de meio século de vida. Depois de terminar a segunda leitura dos dois livros, já em condições acadêmicas (sentado, tomando notas), senti a mesma insatisfação, a mesma insaciedade que me acomete depois de ler uma tuitada ou um haicai. Gosto de quero mais nem sempre é bom, ainda mais quando, como eu, se é um glutão literário, que gosta de ler e de entender o que lê.

O Flamengo não está em campo, mas o que se vê nas entrelinhas dos titãs em luta é muito lance de efeito, muita firula, muito craquismo. Lindo de se ver, gostoso de se ler, deveras, mas cadê a bola pro mato, já que o jogo é de campeonato? Dungo-Dinhista convicto, sinto falta de sangue. Não da falcatrua produzida por um prosaico parafuso na base da Copa, mas daquele sangue ausente na Luísa de O primo Basílio, na estocada mortal de Machado de Assis. Os personagens esquematizados de História de não acontecer são funções matemáticas, e o(s) Gustavo(s) de Anjo das águas tem(têm) a fragilidade moral de quem se pergunta se vai ter que responder pelos erros A MAIS (porque, deduzo, os erros normais são pagos liminarmente pelo papai e pela mamãe).

O primeiro tempo passou tão rápido que o leitor desavisado, caso tenha ido à copa buscar um refrigerante e um sanduíche de salame, voltou ao seu lugar na geral depois do meu apito mandando os dois contendores para os vestiários. Zero a zero, nenhum lance de gol, mas muitas jogadas bonitas para repetir em câmera lenta, acelerada, quadro a quadro, em retrocesso…

Os dois times voltam mais nervosos, o que costuma ser bom para um romance. Schwaab aposta tudo num experimentalismo que intertextualiza com O alienista, de Machado de Assis; com O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, como um resenhista anterior já registrou; com a obra completa de Jorge Luís Borges (alguém falou em Borges, antes); com o Estruturalismo e com a Pós-Modernidade (se é que esta existe); e com o molequismo de Oswald de Andrade. Tanta pretensão esbarra na solidez entediada da prosa segura de Noll, que não joga para ganhar, mas para manter a bola rolando, característica marcante em seus romances, exatamente por isso considerados os melhores exemplos (sem nenhuma ironia) do niilismo e do relativismo absoluto da Pós-Modernidade.

Sem conseguir marcar a favor, apesar de alguns chutes perigosos, como a insinuação de abuso sexual intrafamiliar, que todavia bate na trave pela gratuidade e pela falta de desenvolvimento posterior (teria sido apenas uma citação de Guido Crepax, substituindo a russa-branca loira e esquálida pelo paleo-anchietano Necessita Atendimento?), ou a boa sacada da qual parte a trama, que acaba saindo pela linha de fundo de seu próprio lado, cedendo um escanteio ao apatetado Gustavo, que, tentando cobrá-lo e cabecear ao mesmo tempo, acaba perdendo as calças e a verossimilhança no areão da praia. Ou ainda o melhor da obra, que é o rancoroso Homem, que, nos descontos, quando tudo indicava uma prorrogação, foi obrigado pelo técnico, preparador físico e presidente do clube Reges Schwaab a marcar um vexaminoso gol contra, muito bem flagrado pelo Pedro Mandagará em sua resenha do jogo 49 deste Gauchão de Literatura. Aquela página 77 é um momento de má imitação dos piores momentos do saudoso Moacyr Scliar, aqueles em que, no final dos seus romances até aquele exato ponto devorados com curiosidade e tensão crescente, ele resolvia dar uma regredida jdanovista e explicava toda a alegoria criada na obra, para concluir que não era mágico, era só realismo… Caio Fernando Abreu, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Guimarães Rosa e Manuel Scorza se reviram até agora em seus túmulos com aquela página 77.

Confesso que torci pelo desafiante, apesar do grande respeito que tenho pela prosa de Noll, mas estou aqui para julgar, não para gostar. O placar mais justo talvez fosse um zero a zero no tempo normal, na prorrogação e nos pênaltis, mas a tranquilidade, fruto da maior experiência, valeu a João Gilberto Noll o título, que a inexperiência do surpreendente e promissor estreante Reges Schwaab botou a perder.

Sem pesar, sem entusiasmo, trilo o apito enquanto – desconfio – parte da torcida reage com indignação. Bem, sou Paulo, julguei um bom combate, levei até o fim a partida final do Gauchão de Literatura e mantenho a fé de que ambos os autores logo publicarão algo melhor.

Afinal, autores não têm que agradar aos juízes. Autores escrevem. Como diz o maior poeta brasileiro, o afro-anglo-lusitano Fernando Pessoa, “Sentir? Sinta quem lê”.

PLACAR
História de não acontecer 0 x 1 Anjo das ondas

VENCEDOR
Anjo das ondas, de João Gilberto Noll

CAMPEÃO DO CAMPEONATO GAÚCHO DE LITERATURA 2011

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18 respostas para JOGO 51 – História de não acontecer x Anjo das ondas

  1. paulo tedesco disse:

    Aos mal-humorados subcríticos que despontaram em todo o Gauchão, essa é a boa resposta. Gostei. Lu e equipe, parabéns! Que tenhamos outros, tão bons como esse.

  2. Saúdo Lu Thomé por este espetacular campeonato. Saúdo Paulo Sebben, o único que teve a coragem de dizer exatamente o que os dois finalistas são.

  3. Magali Lippert disse:

    Quanto a resenha: gostei… mas só para constar (mesmo que seja só uma piada): orelha não é marcador de página! Usá-la como marcador força a encadernação e acaba causando o desprendimento da capa! Sei que pouca gente sabe disso, então, vai a contribuição! Abraços e parabéns a todos pelo trabalho!

  4. Parabéns a todos os participantes, árbitros, torcedores, times. Tenho certeza que uma porção de leitores – e mesmo de escritores, como eu – acabou se divertindo muito nessa competição, e enchendo sua lista de livros com o destilado mais atual dos autores gaúchos. FELIZ PÁSCOA pra todo mundo!!!! )=)

  5. Luiz Paulo Faccioli disse:

    “Confesso que torci pelo desafiante, apesar do grande respeito que tenho pela prosa de Noll, mas estou aqui para julgar, não para gostar. O placar mais justo talvez fosse um zero a zero no tempo normal, na prorrogação e nos pênaltis, mas a tranquilidade, fruto da maior experiência, valeu a João Gilberto Noll o título, que a inexperiência do surpreendente e promissor estreante Reges Schwaab botou a perder.”
    Esse foi o fecho de ouro deste Gauchão. Paulo Sebben conseguiu resumir uma questão complexa , que representa o grande desafio de qualquer árbitro, com a simplicidade e a segurança quem captou o espírito do campeonato e sabe muito bem do que está falando.
    Parabéns aos dois competidores por terem jogado uma partida bonita e difícil onde o placar se tornou secundário. Parabéns pela arbitragem! E vida longa ao Gauchão e a minha querida Lu Thomé!

  6. Só uma coisa, pessoal: o meu Seben não tem dois bês!
    Muito obrigado a todos!

    • Luiz Paulo Faccioli disse:

      Sim, é verdade, me dei conta depois de ter postado o comentário. Desculpa. Eu, que detesto encontrar meu nome mal escrito, devia ter prestado mais atenção e não ter seguido o Paulo Wainberg, um dos três Paulos aqui envolvidos. Mas Luízes e Paulos acabam sempre se entendendo! Grande abraço.

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  9. O gauchão 2011 terminou. Me surpreendi com muitos resultados e me interessei por ler livros e autores novos. Especialmente as resenhas dos jogos finais ilustram um tanto como a disputa pode ser interessante e como o gauchão em si é um bom instrumento de divulgação de boa literatura (inevitavelmente da má literatura também, claro). Gostei de ter participado, mas muitas vezes as resenhas foram mais comentadas que os livros e isso me aborreceu terrivelmente. Leituras menos apaixonadas e/ou comprometidas com um estilo ou gosto são sempre mais eficientes para ajudar um hipotético leitor a se interessar por um livro ou por um autor. Divagando um tanto, acredito que o formato de um campeonato por pontos corridos sempre é mais justo que o formato mata-mata (como o utilizado nesse gauchão e nos campeonatos literários similares a ele). Todavia, caso o formato de pontos corridos fosse utilizado, seriam necessários 96 jogos, ao invés dos 51 jogos que acompanhamos. A logística seria muito mais complexa, o número de juízes, partidas por semana e comentários, muito maiores. Talvez o resultado fosse o mesmo, talvez não. De qualquer forma já me inscrevo para acompanhar as próximas edições do gauchão. Um último registro: O trabalho de organização de nossa czarina, Luciana Thomé, não pode ser minimizado. Sem ela esse campeonato perderia muito. Parabéns!

    • Rodrigo Rosp disse:

      Aguinaldo: fico também muito feliz com o que rolou no Gauchão. Ainda acho que as resenhas têm sido mais assunto que os livros, mas espero que isso possa ir mudando; afinal, esse é um dos objetivos do Gauchão: que os livros sejam mais lidos.

      Quanto à fórmula de disputa, duas coisas: eu não acho que a fórmula de pontos corridos seja a mais justa em hipótese alguma, mas aí é uma discussão mais futebolística que literária. De qualquer forma, se a tabela previsse embates de todos contra todos (em turno único), teríamos 1128 jogos, e não os 96 por ti apontados!

      Enfim, dou os parabéns (e agradeço) publicamente à Lu Thomé por tudo que faz pelo Gauchão e torço para que nosso humilde torneio tenha sido legal de acompanhar para o público.

      • Touché! É verdade, errei feio na projeção dos jogos. De qualquer forma concordamos com o bom resultado da coisa como um todo. Foi um bom combate e o livro que ganhou merece sim aplauso de nós todos. Inté uma próxima. Bom 2012 a todos.

  10. Diego Lopes disse:

    Com a escalação de P.S. para apitar a sua partida final, os organizadores do gauchão de Literatura enfim revelam a verdade sobre o campeonato: não era pra ser levado a sério nem por um segundo. Era uma pegadinha do mallandro o tempo todo…

  11. noia kern disse:

    Parabéns aos organizadores, mais uma vez foi um sucesso!

  12. Gustavo disse:

    Posso falar pela minha experiência. Não conhecia nada do Gauchão de Literatura; comecei a acompanhar o campeonato pela metade e, como toda boa disputa, fiquei realmente curioso para saber quem ganharia. Nas disputas finais, comprei muitos dos livros, li alguns e, por vezes, discordei dos resultados, mas admitia (à contragosto) que os juízes tinham razão nas suas decisões.
    Se o Gauchão de Literatura fez uma pessoa comprar e ler um ou dois livros, a experiência já terá valido a pena.
    Uma (pequena) pergunta: não sei se existe, mas não teria como criar a figura da torcida? Afinal, torcidas e fãs enlouquecem juízes e podem decidir um jogo, ou até mesmo fazer um livro parecer mais interessante do que outro. Por exemplo, uma semana antes do jogo, abrir uma enquete ou pedir para a “torcida” deixar comentários capazes de influenciar, comover ou aterrorizar os juízes. Torcida pode ganhar um jogo. Desculpas antecipadas se isto já existe e eu não consegui localizar.

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