JOGO 15 – O videogame do rei x O homem proibido

JOGO 15

O videogame do rei,
de Ricardo Silvestrin (Record / 2009)
x
O homem proibido,
de Eugênio Giovenardi (Movimento / 2009)

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JUIZ
Milton Ribeiro – É jornalista, escritor e crítico literário. É responsável pela área de Cultura do jornal eletrônico Sul21 (http://sul21.com.br/jornal/), mantém o blog Milton Ribeiro (http://miltonribeiro.opsblog.org/) e outro anônimo. Prefere apresentar-se apenas como um voraz literato, melômano e cinéfilo. É sócio do Sport Club Internacional e sósia de Mahmoud Ahmadinejad, além de ser daltônico e de ter os pés chatos. Tem curriculum vitae completo em seu blogue, o que torna desnecessário dar mais informações. Seu perfil no twitter é constrangedoramente previsível: @miltonribeiro.

O jogo

Uma injustiça, uma tremenda injustiça, uma verdadeira anedota do destino o sorteio que determinou o jogo entre O videogame do rei contra O homem proibido. O videogame do rei, de Ricardo Silvestrin, é um divertimento, um livro leve e fluido que se lê em poucas horas, enquanto que O homem proibido, de Eugênio Giovenardi, é um denso relato autobiográfico que foi lançado há poucos anos, revisado e relançado sob outro nome.

Ou seja, são livros inteiramente desiguais. Visam públicos diferentes, têm intenções diversas e buscam emoções distintas sob métodos que exaurem os sinônimos que ora disponho em meu cérebro para a palavra dissímil. O leitor inteligente replicará que, mesmo se os livros fossem comparáveis, o árbitro sempre acabaria decidindo em função de seu gosto pessoal. E eu sou obrigado a assentir dizendo que minha simpatia acabou precedendo a própria leitura, pois eu sabia de antemão que era mais propenso a…

Muito cedo para um spoiler. O videogame do rei trata de um país administrado como se fosse um grande videogame. O Rei costuma advertir seus ministros explodindo seus corpos, porém, como eles têm muitas vidas, as explosões convertem-se em experiências pavlovianas com a finalidade de condicioná-los corretamente. Após serem explodidos “em vários pedaços”, eles se refazem e dizem, conformados: “Obrigado, Alteza, por me fazer enxergar”. O Rei é formado em filosofia e um belo dia pendura – sim, como acontece com alguma frequência com quem usa Windows – e a Rainha fica no impasse entre dar ou não dar o comando para explodir o Rei. Será que ele se refaz? Não dá para só resetar sem explosão? Afinal, as convicções da Rainha – ela, apesar de amar o Rei, tem um blog onde critica a violência das explosões – estão em cheque. Dito assim rapidamente, tudo parece muito caricato, mas o livro não se presta a esse tipo de redução, é uma boa e bem contada história. Nada tenho contra a diversão. Silvestrin brinca habilmente com as situações e faz boas analogias com a práxis política.

O livro de Giovenardi não pode ser mais diferente. Trata-se de um minucioso Bildungsroman (romance de formação) de alguém destinado pela família a se tornar padre. O texto não tem nada de descompromissado – é clássico, pausado, com digressões pensadas durante toda uma vida. O autor tem 77 anos e desenvolve seu relato entre o analítico e o emocionado. A narrativa se inicia com a decisão da família de tornar padre o filho mais velho, depois são descritos os longos anos de estudo no seminário com o abandono total dos familiares e a inadequação de Juliano para a função. Bom estudante, ele se torna o frade capuchinho Leonardo de Módena. Ao final do livro, o desconforto de Juliano aumenta de forma intolerável. É um livro escrito em ritmo lento como alguns dos melhores de Assis Brasil, mas temperados com as maldades e o expressionismo de O ateneu, de Raul Pompéia. Bom livro? Sim, sem dúvida, uma bela surpresa para este humilde comentarista que vos escreve.

Então, comparar tais livros é como propor uma partida entre jogadores de tênis e outros de basquete, é como escolher entre uma canção e um livro, entre um carro e um quadro. É algo impossível, mas não é por isso que vamos abandonar o campo de jogo.

Aliás, o jogo

A partida começa mal para O homem proibido. Há um prefácio de uma página que é totalmente desnecessário. Sua leitura tem como subtexto – em caracteres piscantes – um claro PERIGO, FUJA! É uma sinopse sem graça, absolutamente redutora. Por outro lado, o Videogame passa a funcionar normalmente após pressionarmos o ON.

Tal fato fez com que O videogame do rei inaugurasse o placar.  Videogame do rei 1 x 0 O homem proibido. Porém, quando a bola foi colocada no centro para o reinício da partida, o panorama da peleja alterou-se. O Homem proibido passou a envolver inteiramente o Videogame. Com um futebol lento e clássico, os padres dos seminários amordaçavam e matavam no nascedouro todas as vontades e desejos do adversário. Silvestrin tentava de tudo, sempre sem sucesso. Nosso repórter Juan José Saer ouviu os gritos do técnico da equipe do Homem proibido à beira do gramado. Ele incentivava sua defesa castradora aos berros de Ninguém, nada, nunca! Eficientíssimo! Uma beleza!

Então, o que o estádio viu foi a estarrecedora superioridade de um time que passou anos trancado e que saiu do claustro como um grupo de touros insaciáveis. O gol de empate surgiu naturalmente da perfeita construção de personagens, da família, do ambiente pobre do campo. O desempate veio com um belíssimo gol: o do crescente desconforto misturado com a sensualidade nascente do menino. O terceiro veio com seu abissal ressentimento para com a família, fato não contrabalançado pela necessidade de afeto e de amizades descrita de forma ponderada, mas onde se percebe o fundo duro e peremptório do ódio.

Após o intervalo, o Homem proibido seguiu implacável. O quarto gol ocorreu quando o padre Leonardo começou a trabalhar e teve seus primeiros embates políticos com a igreja católica (sim, em minúsculas). Dom Vicente Scherer e de Dom Aloísio Lorscheider aparecem como personagens em todo o seu vazio e submissão aos militares da ditadura iniciada em 1964. O quinto gol foi marcado na delicada cena com a chilena Graciela, uma maravilha de contenção e elegância. E o sexto veio com a apostasia, com o afastamento definitivo, com a renúncia à igreja e a permissão para que Juliano pudesse finalmente gozar de liberdade sexual e intelectual.

Pouco falei do Videogame. Foi voluntário. A grandeza do tema e a construção ontológica de Eugênio Giovenardi tornam O homem proibido um romance sólido, difícil de ser batido. O comando do jogo foi dele. A fantasia de Silvestrin – muito boa em seu gênero – não pode alcançar a rica catedral submersa de Giovenardi. Apesar de tudo, faria-lhe alguns cortes, principalmente na parte da apostasia. A situação estava tão bem descrita e contextualizada que prescindia de explicações. As digressões finais tiraram um pouco da força do romance, o que valeu mais um gol para o Videogame no apagar das luzes.

PLACAR
O videogame do rei 2 x 6 O homem proibido

VENCEDOR
O homem proibido, de Eugênio Giovenardi

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9 respostas para JOGO 15 – O videogame do rei x O homem proibido

  1. Homero Jucceni disse:

    Obrigado pela resenha cuidadosa, sem perder o bom humor que o CGL pede. Fiquei interessadíssimo em ler “O Homem Proibido” e perdi o pouco interesse que um dia tive em ler “O Videogame do Rei”. Louvo ainda a coragem do árbitro em dar a vitória para o livro escrito por um autor de 77 anos numa partida contra um queridinho da mídia gaúcha…

  2. Resenha bem boa, divertida, gostei! Eu li “O Videogame do Rei”, mas não li “O Homem Proibido”. Só me fica a dúvida de se se pode considerar “O Videogame” como um romance. Para mim é mais filosofia do que propriamente um romance mas, enfim… se alguém quiser dar uma espiada no meu blogue, pode ir ao http://porteiradafantasia.blogspot.com/2011/08/cronica-literaria-jogo-de-ideias.html.

  3. Gertrude disse:

    Taí! Sem importar os 77 anos do Eugênio Giovenardi ou os amigos midiáticos do Ricardo Silvestrin. Resenha que FALA dos LIVROS e não dos belos olhos dos autores ou de suas queridices. Pessoas dos comentários (vale muito para os amigos e parentes dos injustiçados e oprimidos do Gauchão – jogos 9 e 14): leiam e aprendam comoéque se faz uma resenha com fundamento. Parabenza, seu Milton Ribeiro.

  4. Pingback: Minha arbitragem para o jogo “O videogame do rei x O homem proibido” – Milton Ribeiro

  5. Claudia Antonini disse:

    Enfim, uma crítica de verdade, mesmo que seja através do CGL e não da grande mídia. Um exame sem o compromisso de agradar amigos e editoras, com profundidade de análise e argumentos sólidos. Como nos faltam críticos sérios na literatura, música, cinema e artes em geral. Abundam os enchedores de linguiça e os puxadores de saco e escasseiam os críticos com base, com bagagem, que não temam dizer simplesmente o que pensam sem cair no expediente da crítica de ataque só para aparecer. Não li nenhuma das duas obras mas estou muito inclinada a ler o Giovenardi.

  6. Hahaha! Só a apresentação já me fez parar para vir comentar sobre sua hilariedade. Agora, back to the text.

  7. Fiquei com vontade de ler “O homem proibido”

  8. arbo disse:

    huahahuhauha eu tbm, charlles. e se tu conseguir o link desse blog by anônimo aí, manda pra mim! e vice-versa, prometo!

  9. arbo disse:

    gostaria q houvesse um campeonato goiano… hei, milton, isso dá vaga para o nacional?

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