JOGO 47 – O centésimo em Roma x Unhas

JOGO 47

O centésimo em Roma,
de Max Mallmann (Rocco / 2010)
x
Unhas,
de Paulo Wainberg (Leya / 2010)

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JUÍZA
Luisa Geisler – Nasceu em 1991, em Canoas (RS). É autora de Contos de mentira (Prêmio SESC de Literatura, editora Record, 2011). Publicou textos em antologias e revistas. Apesar de estudar Relações Internacionais, é cronista da revista Capricho. Passou a adolescência inteira matando as aulas de Educação Física e nunca soube as regras de futebol. Assiste apenas à Copa do Mundo e olhe lá.

O jogo

Eu leio durante as aulas, ok? Ok. Não por desinteresse, mas por péssima abordagem, ok? Ok. Ou seja, em Marketing Mix e Análise Diagnóstico, estou num canto do fundo, lendo. Durante o intervalo, pego meu livro, dirijo-me à segunda ou terceira fila, com meus coleguinhas. Ok? Ok.

Pois eu comecei pelo Unhas (em aula). Quando comecei a ler O centésimo em Roma, no fim da primeira aula, uma coisa que aconteceu:

— Cara, que afudê, que livro é esse, da onde e — já tomaram o livro de mim, leram a orelha, futricaram nas páginas iniciais, perguntaram quem era o autor, se eu emprestaria ao terminar. — É bom mesmo, hein?

Não julgue o livro pela capa um cazzo, ok? Ok. Ninguém falou nada do Unhas e todo mundo o viu também.

O centésimo em Roma é lindo. Claro que a capa de Unhas é bem-feita — tem relevo dos azulejos na imagem, por exemplo —, mas não me empolgou. A imagem (em conjunto com o título e a orelha) me levou a pensar em algo estilo Jogos Mortais. Um assassino que mata pelos pés, sei lá.

Além disso, Unhas deixa a desejar em termos de estrutura narrativa.

O livro de Paulo Wainberg tem uma cena central, um assassino contratado conversando com sua futura vítima, numa sala fechada. Ele conta a essa vítima toda sua história. Por quê? Ele explica que nunca sentiu vontade de glória e reconhecimento, pois são esses os motivos que desmascaram todos os assassinos. Contudo, como um vilão de filme, ele começou a contar à menina toda sua história e sente cada vez mais prazer em fazê-lo. Antes de matá-la, resolveu contar, ok? Ok, ok, vá lá.

Nosso vilão oferece seus trabalhos de “resolver” questões passionais sem solução. Paixões proibidas, com problemas, sabe quais? Pois então. Apenas um contato por celular pré-pago, pagamento antecipado, três meses de prazo e nenhuma garantia. E tem clientes. E ah: atende apenas a homens. O argumento de atender apenas homens é de que “mulheres lidam muito bem com paixões proibidas. Desfrutam ao máximo, mas, ao primeiro sinal de que a vida organizada delas está em perigo, renunciam à paixão, superam o sofrimento (…) e rapidamente se recuperam”. Ok, ok, é o personagem, biriri. Pode soar rude e coisa e tal, mas é um argumento machista, falacioso, sem falar que não me agrada. Ok? Ok. O personagem tem lógica, ele saberia que cada caso é um caso.

Esse argumento (assim como outras idiossincrasias do personagem) não fecha com o perfil todo. Uma hora, nosso vilão fala “pau” e “gozar”; na outra, pede “perdão pelo palavrão”; na outra, diz “pênis”; numa hora, usa “gurias” (p.144), pra passar a narrativa inteira com o “você”. Não convence.

Ok, temos um assassino que mata pequenos “impedimentos” e “problemas” em relacionamentos. Tava com a filha da empregada, se apaixonou pela guria, mas agora as duas tão pedindo um monte de dinheiro? Descobriu que sua irmã – cujo vício de drogas você costumava sustentar, além de transar com a menina – virou stripper? Mata lá. Os casos puxam para o amor incestuoso, chocante, proibido, por aí vai. Ao longo dos trabalhos, nosso vilão cada vez mais sente prazer em planejar e matar pessoas. Ok? Ok.

Mas se bem me lembro, eu falava de estrutura narrativa. O livro vai e volta nessa cena “presente” com a garota de quinze anos, alternando entre flashbacks, discurso direto do protagonista, narrativas com a menina como focalizadora principal, ou também a (ex-) esposa do assassino. O ritmo dos capítulos é delicioso. São curtos, transmitem dinamicidade. Além do que o leitor não se perde, por mais que haja diversas histórias se sobrepondo.

Os flashbacks não se dão ao trabalho de ser didáticos, no sentido de que “este é o momento logo antes de W e daqui a pouco será o momento Z, sabe, leitor? Entendeu?”. Deixam ao leitor a junção da história e são bastante claros.

Contudo, há problemas nessa estrutura, que é boa sim, que ousa bastante e que é levemente mais complexa que O centésimo em Roma. Os tempos verbais nos capítulos são irregulares. Por exemplo, supõe-se que os capítulos sob o ponto de vista de Elisa, a menina, estão no presente, enquanto outros capítulos do livro estão no passado. Contudo, no oitavo capítulo, a estrutura de capítulos de Elisa começa a aparecer no passado. E então, às vezes, no presente. Então, no passado. E, então, há outros capítulos no presente. Outros, no passado. Sem razão, sem ordem. Talvez seja uma crítica deveras cartesiana, mas me incomodou. Soou mais como falha de revisão do que intencional. Ok.

Escrevi um parágrafo inteiro sobre a linguagem, as (longíssimas) falas do narrador, o uso de travessões e então fui ler a resenha passada do Unhas. Digo apenas: idem. Cortei. Sigamos em frente, ok? Ok.

Tem muito de conhecimento sobre formas de matar e como e por que e onde e consequências (por exemplo, sobre a escolha de facas ao invés de armas, métodos pouco convencionais). Há frases polêmicas (“Quem defende a ideia de um direito natural à vida? De onde se tirou isso? Cada nascimento é um acaso” p.104), outras boas (“e achava que fazer a mesma coisa todos os dias era a maneira certa de viver” p. 139). Ou seja, apesar de ter problemas, a história é boa. Há momentos em que compensa ignorar as falhazinhas, tipo nessa coisa toda das frases.

E de boas frases se faz O centésimo em Roma. Max Mallmann usa bem a sua mão de roteirista, porque os diálogos são um acerto imenso. Há um excesso de uso de discurso direto, por exemplo (p. 85):

— Está dispensado, Zopyros.
— Obrigado, senhor.

Mas se compensa com (p. 33):

— Você acha que sou louco?
— Claro que é.
— Louco como meu pai?
— Não conheci seu pai.
— Mas já falei dele.
— Você é mais louco. Casou com uma menina que tem a metade da sua idade.
— Mais da metade. Ela tem dezenove. Vai completar vinte este ano.
— Loura, alta, com a pele da cor do marfim e os olhos azuis como o Mar Tirreno.
— E mamilos rosados. E pêlos púbicos que parecem fios de ouro.
— Não preciso de tantos detalhes.
— Mas eu preciso de você, Rutília.

O romance retrata as peripécias de Desiderius Dolens, legionário romano plebeu com o complicado sonho de subir na hierarquia da “profissão”, ou seja, se tornar cavaleiro. Além disso, ele é endividado e tem um mínimo de conhecidos influentes. Acaba chefiando uma das divisões das cortes urbanas romanas, bem menos prestigiadas. Ok.

A estrutura funciona com duas linhas de tempo. Alternam-se os capítulos com trechos das memórias de Nepos, um subalterno do centurião, escritas em primeira pessoa. Esses capítulos trazem apenas a narração sumarizada, feita com Nepos já idoso, contando da política, lutas, crimes, consequências dos eventos: o futuro mesmo, ou o passado com um olhar do futuro.

Os outros capítulos trabalham com um narrador onisciente em terceira pessoa, que acompanha Dolens nas cenas que merecem destaque, nos momentos de virada para a narrativa.  Revezam-se de forma ordenada, além de que sempre param a narrativa num momento de “o que vai acontecer agora?”, por exemplo (p.176):

 — Para mim, seria uma honra morrer na cruz.
— Que nem um escravo?
— Como Christus.
— Talvez esteja na hora de rever o manual — Dolens fala a Nepos, num tom próximo ao paterno. — Garanto que o cristianismo não seria tão popular se o deus deles tivesse morrido empalado.

… o que incita muito a curiosidade e dá mais vontade de devorar o livro.

Os narradores não se confundem, o livro é bastante organizado e estruturado, a escolha cena versus sumário está ótima. Injetam ar fresco na narrativa.

Além de estar com um bom ritmo, dado pelos capítulos (também) curtíssimos, a história é boa. Nem é tão excepcional assim, mas é bem narrada. Poderia ser uma história terrível se o autor escolhesse os momentos errados como cenas. Momentos de revelação estão bem escolhidos, bem-narrados e a tensão é construída com visível cuidado. Há senso de humor e ironia, os personagens são verossímeis.

A pesquisa feita por Max – além de estar cuidadosamente descrita ao final do livro (confesso que não tive paciência pra ler, mas a outra resenha mostra que há interessados) – se reflete durante o livro inteiro.

A linguagem tem um ou outro excesso, algumas frases poderiam ser cortadas, alguns verbos dicendi exageram, assim como faltam em outros lugares, alguns incisos mal colocados, alguns diálogos são longos demais. Mas, cara…

— É um livro bom mesmo, sério.

PLACAR
O centésimo em Roma 4 x 2 Unhas

VENCEDOR
O centésimo em Roma, de Max Mallmann

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5 respostas para JOGO 47 – O centésimo em Roma x Unhas

  1. Mais uma vez venho dizer que o livro de Mallman é um grande livro, mereceu ganhar e, para meu gosto, deve ser finalista e, talvez o vencedor deste campeonato. Nada a discutir quanto ao resultado, que me parece muitíssimo justo. Mas devo referir que me desgostou a maneira debochada (e despojada e sem compromisso) que a ilustre Juiza utilizou, para resenhar e julgar as obras. No meu caso (e ela confessa), ela fez a crítica mais do personagem do que do livro, o que não me parece justo nem adequado, numa resenha e num julgamento. O personagem Unhas é execrável em todos os sentidos e não gostar dele é um imperativo para qualquer leitor. Outra coisa é o julgamento da obra. Independentemente disto, acho que ela acertou no resultado final. E o campeonato continua espetacular.

    • Sharon Caleffi disse:

      Oi Paulo!

      Pra mim, foi um alívio encontrar uma resenha debochada no meio de tanta seriedade. Prefiro assim. Eu torci pelo Unhas nessa fase, mas pelo jeito os competidores são ótimos!

    • Sergio disse:

      Adorei o tom da resenha.

  2. lacarmencita disse:

    Eu não gostei da capa e do título do livro.

  3. Diego Lopes disse:

    O jeitão da mocinha foi uma das melhores coisas que aconteceram neste campeonato.

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